Na minha última crónica, abordei como o propalado combate aos “expedientes dilatórios”, transformado em narrativa que acusa a defesa de protelar processos, tem sido utilizado para constranger o exercício dos direitos de defesa dos arguidos e a liberdade de exercício do mandato forense. Desta feita, irei abordar um “mecanismo” muito em voga nas instâncias criminais e que os Advogados que ali pleiteiam sentem na “pele”, assim como os cidadãos que defendem, mas de que os média não falam. Ou seja, como os Tribunais Criminais através do “expediente” das “irregularidades e nulidades sanáveis”, limitam e nalguns cassos cerceiam o direito de defesa dos cidadãos em direito penal.O processo penal assenta em garantias. A sua violação gera (ou devia gerar) a invalidade dos atos. A lei distingue entre nulidades insanáveis (as mais graves), as nulidades que dependem de arguição (as sanáveis) e as meras irregularidades. É na interpretação destas últimas duas categorias que reside o perigo. Ao classificar a violação de um direito adjetivo de defesa como uma “mera irregularidade” ou “nulidade sanável” por um ato subsequente, o sistema judicial valida o que é, na sua essência, inválido, prejudicando os direitos de defesa do arguido. Um caso recente ilustra bem esta prática. Um cidadão estrangeiro, residente em Portugal há quase duas décadas, foi condenado a pena de prisão de sete meses por condução sob o efeito do álcool. O arguido não fala nem compreende português, facto reconhecido pelo tribunal, que lhe nomeou um intérprete. O problema surgiu após a condenação. A sentença, um documento técnico que fundamenta a privação da liberdade, nunca foi traduzida para a língua materna do arguido, apesar de a defesa do arguido o ter requerido. Na verdade, a defesa requereu a tradução para que o seu constituinte pudesse compreender as razões da condenação e decidir, de forma informada, sobre o recurso. O pedido foi indeferido, depois de Tribunal de 1.ª Instância ter deixado “cirúrgica e convenientemente” chegar ao fim o prazo de recurso. Depois foi a vez da Relação considerar que a presença do intérprete durante a leitura da sentença era suficiente e que a falta de tradução escrita constituía uma mera irregularidade, já sanada, porquanto a defesa durante a leitura da sentença por súmula e respetiva tradução que tiveram lugar em cerca de 12 minutos, não exigiu a tradução escrita. A sentença escrita, em língua portuguesa, essa, foi disponibilizada uns dias depois. Mas o Tribunal da Relação veio a considerar sanada a “irregularidade” porquanto a defesa não alegou a falta da tradução no ato da leitura, quando nem a sentença em português foi disponibilizada. Esta decisão é reveladora do “faz de conta” que se vive nos Tribunais Criminais do nosso país todos os dias e que convive com o propalado, mas falso, excesso de garantias. A “irregularidade” sanou-se, e precludiu-se o direito do arguido a ter acesso a uma sentença traduzida sob a égide do Tribunal, porquanto a defesa não invocou essa irregularidade no ato da leitura, altura em que nem a sentença em português foi disponibilizada. Assumiu-se, pois, que uma tradução oral e sumária de um texto jurídico complexo, lido em minutos, equivaleria a um documento escrito que pode ser analisado com calma com a família e antes ou depois com o advogado. O direito a ser informado “em língua que entenda”, previsto na Convenção Europeia dos Direitos Humanos e em diretivas da UE, de nada serviu. Os Tribunais ao classificarem esta omissão grave e crassa do direito de defesa como uma “irregularidade sanável”, minimizam uma falha que atinge o amago do direito de defesa dos arguidos. Deixam-se correr os prazos, as condenações convolam-se em definitivas e o direito dos cidadãos a compreender por que razão o Estado lhe restringe a liberdade é, na prática, negado, com recurso a “expedientes” interpretativos para limitar e cercear direitos. Quando se apregoa que os advogados usam “expedientes dilatórios” para defender os seus constituintes, tem de se falar de Tribunais que, através de interpretações formalistas ou até recorrendo a “mecanismos” de distorção de garantias processuais de defesa, usam expedientes (i)legais para condenar cidadãos. Na verdade, atualmente, o “expediente” das “irregularidades e das nulidades sanáveis”, “sanáveis” no entendimento de quem decide quando as mesmas nem sequer ainda são conhecidas ou percecionadas pelos arguidos e pelas defesas, é utilizado para dilacerar as garantias de defesa de cidadãos em processo penal. Como diria Fernando Peça se vivo fosse: “E esta hem?!”.Advogado e scio fundador da ATMJ – Sociedade de Advogados