Dias Perfeitos

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As casas de banho podem ser obras de arte.

As repetições de dias imbuídos de rotina podem ligar-nos à vida e ao mundo.

O último filme de Win Wenders, Dias Perfeitos, fala-nos disso e de muito mais. É comum dizer-se que a obra de arte omite tanto, quanto comunica, perante aquele que a admira. Wenders coloca-nos numa comunicação direta com o personagem do seu filme, passado em Tóquio, mas há uma imensidão de silêncio e de silêncios para descortinarmos. Talvez para, simplesmente, vivermos. O filme realiza uma apologia do momento. Do aqui e agora. Da capacidade de podermos vivenciar o fluxo do tempo, e dos eventos que se encadeiam no dia-a-dia, que podem ser repetitivos e simples, mas ainda assim únicos e incomensuráveis. A personagem principal Hirayama, vive dias consecutivos, aparentemente iguais. O seu trabalho é limpar as casas de banho públicas de Tóquio. Fá-lo com o maior cuidado e respeito. Pelos espaços, pelos outros. De manhã, sai cedo de casa, olha sempre o céu, e sorri, antes do primeiro café. Depois, seguem-se um conjunto de rotinas diárias, que se repetem dia após dia. As mesmas rotinas de higiene pessoal, o mesmo trabalho, as mesmas formas de limpeza das casas de banho públicas, o mesmo local para comer a sua sandes ao almoço, a mesma forma de tirar fotografias às árvores com a sua máquina analógica, o mesmo final de dia, o mesmo restaurante simples onde janta algo básico, e a mesma rotina de ler antes de finalmente apagar a luz e adormecer. O fim de semana também é feito de rotinas.

Hirayama deambula pelas ruas de Tóquio, enquanto surgem vários planos da Tokyo Sky Tree, a torre mais alta da cidade. Que parece representar todo um mundo, do qual de alguma forma, Hirayama se despediu, se despiu. Não sabe o que é o Spotify, vive num mundo analógico, rodeado de velhas cassetes de música dos anos 60 e 70 e de livros de edições baratas de clássicos. Enquanto segue na sua carrinha, ouvimos Patti Smith, Velvet Undergound ou Lou Reed (Dia Perfeito) entre outros. Raramente ouvimos o nosso personagem falar e, no entanto, ele está sempre em admiração e conexão com o mundo. À noite sonha com frequência, depreendem-se dores do passado, que se revelam por imagens desconexas a preto e branco. Mais tarde, percebemos que Hirayama tem um

passado ligado a uma família de posses, diametralmente oposta à sua vida atual minimalista. Não sabemos o que se passou. Subentende-se sofrimento, mudanças de vida, pressupõe-se que esta via ascética pode em parte, ser uma forma de suportar pesadelos passados, como pode ser uma forma genuína de viver o momento presente. Como pode conjugar ambas.

Komorebi é uma palavra japonesa de difícil tradução que expressa a ideia da ‘luz que pinga por entre as folhas das árvores’. O nosso personagem, fotografa todos os dias com a sua velha máquina, o jogo de luzes e sombras que serpenteiam nas árvores de um jardim onde almoça. No lamparejo de um momento único, pode surgir uma experiência irrepetível, como pode surgir uma ideia sem-par, um pensamento novo, que nunca tínhamos realizado anteriormente. E que se podem perder se não os retermos. Tal como a vida. E as experiências mais simples do dia a dia. Talvez esta seja uma das ideias centrais na ramificação de reflexões e interrogações que o filme se nos coloca. Todo o filme é um jogo de luz e sombra. Porque revela e oculta. E assim é a existência humana. Tal como a vida de Hirayama. Curiosamente, Wenders remete-nos para a reflexão que Deleuze já tinha realizado, sobre diferença e repetição. E como é que longe de tais divagações filosóficas, pode o comum dos mortais, redescobrir-se na experiência e no pensamento, na repetição e na diferença? Talvez o personagem tenha apenas uma vida rígida, de rotinas e rituais, para lidar com as dores internas, ou porventura, tenha desenvolvido a capacidade de admirar o mundo momento a momento. Como dizíamos, porventura, ambas. Mas deste lado da tela, podemos interrogar-nos sobre a maneira como vivemos o tempo, o momento, o mundo. Como o analógico pode trazer-nos experiências divinas, como as artes podem-se representar numa casa de banho, como o silêncio pode comunicar mais que o falatório, como a simplicidade pode promover raízes mais profundas, como podemos viver de forma mais relacional num mundo cada vez mais distante de si mesmo, como podemos ter uma atitude de maior empatia pelo outro, em sociedades cada vez mais repletas de vazio. Contrastes. Luzes e sombras. A cena final do filme centra-se no rosto de Hirayama. No seu rosto sentimos o crescendo da intensidade emocional. No seu olhar, a tristeza, nos lábios, o sorriso da alegria.

Diretor Clínica Ispa

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