'Descobri-quê?' – em busca da memória negra escondida

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Sem direito a um nome, nem a uma história, a sua vida é animalizada e enterrada numa caixa com o título “Curioso”. Apesar de ter sido cruelmente capturada, brutalizada, e assassinada, num processo de desumanização ainda em curso, a imagem que se reproduz dela é a de uma criminosa. Pelo contrário, o seu carrasco surge como alguém que cuida e protege.

Portanto, se ela está açaimada e encoleirada, isso não só significa que talvez não pertença à espécie humana, como é justificado pela preocupação de evitar um acidente. Afinal, convém que ela, e outros como ela, não morram sufocados ao engolir pepitas de ouro.

A narrativa reproduz-se entre páginas de manuais escolares, e, a partir dela, esconde-se o horror do pior capítulo da História da Humanidade: o Tráfico Transatlântico de Pessoas Escravizadas. Recorro às maiúsculas para evidenciar a importância de um reconhecimento que continua por fazer. Não apenas das matanças, violações e pilhagens – entre tantas outras atrocidades cometidas ao longo de séculos –, como do papel central que Portugal desempenhou nesse período e que, através do ensino, procura romantizar sob o epíteto de Descobrimentos”. Descobri-quê?, questiona-se no espectáculo homónimo, de onde saio com aquela imagem de desumanização mais viva do que nunca.

Sei que nada há de “Curioso”, mas sim de criminoso naquela história, que apaga a vida de Anastácia – a mulher que surge sem identidade – para exibir como necessário um instrumento horrendo, testemunho da brutalidade do passado português.

O espectáculo Descobri-quê?, dirigido a um público juvenil, expõe isso à evidência, confrontando a ficcionada narrativa oficial com a realidade de múltiplas investigações.

Enquanto os manuais escolares tardam em avançar para um processo de descolonização, atrasando o país no seu dever de desracializar, a arte-educação oferece-nos possibilidades de conhecimento, reconhecimento e entendimento. Vamos continuar a ignorá-las?

“Tememos as perguntas pelo medo que temos das respostas”, lembram-nos, no final da peça, os autores de Descobri-quê?, produção que resulta da colaboração dos criadores da Estrutura, Cátia Pinheiro e José Nunes, com o artista, performer e arte-educador Dori Nigro.

Além do palco – onde se cruzam as interpretações de Joyce Souza, Tiago Jácome e Waldju Kondo –, a criação, integrada na Odisseia Nacional do Teatro Nacional D. Maria II, estende-se a um livro, valioso não apenas por trazer o texto do espectáculo, mas por agregar outras assinaturas que reflectem criticamente sobre a herança colonial e escravocrata de Portugal.

O exercício de questionamento tem na história de Anastácia, mulher escravizada, uma reparação fundamental: a que reconhece humanidade às vidas negras e o nosso direito à memória.

“Há quem defenda que (…) era filha de uma família real quimbundo; nasceu em Angola, foi levada para a Baía, no Brasil e escravizada por uma família portuguesa. (…) há quem diga tratar-se de uma princesa nagô/ioruba capturada por traficantes europeus e levada para o Brasil, e ainda quem dê a Baía como o lugar onde nasceu”. Seja como for, assinala Grada Kilomba, autora das palavras citadas, “desconhece-se o seu nome africano: Anastácia foi o nome que lhe deram quando foi escravizada”.

Na obra Memórias da Plantação – Episódios de Racismo Quotidiano – convocada para o espectáculo Descobri-quê? – a artista interdisciplinar recorda que “todos os relatos afirmam” que Anastácia foi “obrigada a envergar uma pesada coleira de ferro e uma máscara que a impedia de falar”.

Por detrás do castigo, prossegue Grada, sobressaem relatos de resistência: “(…) há quem indique o activismo político que a levou a ajudar outros escravos a fugirem; há quem alegue ter resistido aos avanços amorosos do senhor branco; e ainda outra versão culpa uma senhora com ciúmes da sua beleza”. Incertezas à parte, sabe-se que “Anastácia morreu de tétano causado pela coleira no pescoço”.

Conhecer a sua História é reconhecer a nossa Humanidade. E isso só é “curioso” para quem prefere continuar a usar máscaras de silenciamento, e a recusar o pensamento crítico. Com danos que importa reparar.

“Ao atrofiar nossa capacidade de pensar criticamente, se abre margem para uma série de imposições e repetições sistemáticas, cujos manuais e os media reiteram, outorgando e promovendo uma visão eurocêntrica, colonial, patriarcal, capitalista, racista e unilateral da história”, lembram Dori Nigro e Joyce Souza no artigo Dar aulas é um ato performativo.

No mesmo texto, publicado na Revista Ítaca, os autores sublinham a força dos nossos questionamentos, a partir das palavras sempre urgentes de Paulo Freire: “Ninguém ignora tudo. Ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos alguma coisa. Todos nós ignoramos alguma coisa. Por isso aprendemos sempre”. Perguntando, observando e escutando.

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