Num momento em que a guerra voltou ao espaço europeu e a influenciar a definição do mapa do poder global, as democracias enfrentam uma pressão interna crescente e a ordem multilateral revela sinais de crise, as palavras de Durão Barroso na entrevista ao Diário de Notícias, publicada na edição do 161.º aniversário, devem ser lidas como o peso da sua experiência e levadas muito a sério. Quando alguém que liderou a Europa na maior crise financeira da sua história e esteve recentemente no centro da resposta internacional à pandemia lê o presente com preocupação - vivemos um dos períodos internacionais mais perigosos desde a Segunda Guerra Mundial e a Europa está no centro desse risco - é de um aviso informado que estamos a falar.O ex-presidente da Comissão Europeia identifica a ameaça russa como a mais direta e urgente para a Europa. E não é apenas militar. É também política, tecnológica, energética e informacional. É híbrida e persistente. Há, na Europa e fora dela, quem defenda que a estabilização do conflito passará inevitavelmente por concessões à Rússia e pela aceitação de um “compromisso imperfeito” para travar a guerra. A leitura de Durão Barroso contraria essa tese. Para o ex-primeiro-ministro português não há sinais de que Moscovo esteja disponível para uma paz credível e sustentada, nem garantia de que cedências territoriais tragam estabilidade. A Europa terá de viver com a incerteza e preparar-se para ela.Ao mesmo tempo, Barroso sublinha que a invasão da Ucrânia foi um profundo erro estratégico de Moscovo. A Rússia estabeleceu-se como uma economia de guerra, entrou numa relação de dependência crescente face à China e arrisca tornar-se um seu “parceiro júnior”. Nesse movimento, reforçou involuntariamente a NATO, ampliou o sentido de ameaça nos vizinhos europeus e contribuiu para uma nova fase de rearmamento do continente. Mas não é apenas a geopolítica que mudou. A política democrática também se tornou mais difícil de exercer. Barroso recorda que hoje o exercício do poder é mais exigente do que há trinta ou quarenta anos. Há ciclos de decisão mais curtos, pressão constante, radicalização do espaço público e menor disponibilidade para pensamento estratégico de longo prazo. O discurso político empobreceu, tornou-se mais polarizado e mais vulnerável à manipulação e à desinformação. Isto fragiliza sociedades, mina confiança e diminui a capacidade de resposta dos regimes democráticos. O risco externo encontra assim um terreno interno mais vulnerável.É neste cenário que Portugal tem de se pensar e posicionar. O antigo presidente da Comissão Europeia é claro: o país não será uma grande potência militar nem deve cultivar ilusões sobre isso. Mas pode ser relevante de forma inteligente e estratégica. Pode ser elemento-chave de um hub euro-atlântico de defesa. Pode assumir responsabilidades em áreas em que a dimensão não limita a ambição: cibersegurança, capacidades tecnológicas, inteligência, logística, ligação ao espaço atlântico. Pode desempenhar um papel único na articulação com o chamado Sul Global, pela história, pela língua e pelas relações políticas e humanas que conserva.Há, pela primeira vez em muito tempo, um esforço europeu consistente de investimento na área da defesa. Portugal tem a possibilidade de transformar esse esforço numa oportunidade económica e tecnológica. A defesa não deve ser entendida apenas como despesa, mas como investimento em inovação, indústria, qualificação e capacidade nacional. Há empresas portuguesas já envolvidas em projetos estratégicos, há centros de conhecimento com valor acrescentado, há terreno fértil para desenvolver competências críticas. Perder este momento significaria voltar à retórica enquanto outros definem o futuro.Ao mesmo tempo, é indispensável maturidade política e visão estratégica. O próximo Presidente da República terá responsabilidade acrescida enquanto comandante supremo das Forças Armadas e figura de referência nacional num tempo de incerteza. A sociedade portuguesa precisa de compreender que segurança e defesa deixaram de ser temas distantes, técnicos ou abstratos. São hoje dimensões centrais da qualidade da democracia, da autonomia nacional e da proteção dos cidadãos.Num mundo mais inseguro, mais volátil e mais imprevisível, Portugal tem de definir a sua posição e assumir responsabilidades. Tem de ser parte da resposta europeia e atlântica. Tem de proteger as suas instituições democráticas e fortalecer a capacidade de decisão. Tem de preparar-se para riscos que já não são só teoria. O mundo que Durão Barroso descreve nesta entrevista não recomenda hesitações. Exige lucidez, ambição responsável e sentido estratégico. Portugal tem condições para ser relevante. Falta garantir que tem também a vontade política para o ser. E os tais líderes “audazes, com sentido de urgência”, de que, segundo Barroso, a Europa precisa.