Da lei à realidade

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Na evolução das sociedades, é frequente que as leis que ficam como expressão do maior avanço da igualdade, incluindo etnias, religiões, idade, homens, mulheres, e crianças, se defrontem ao longo do tempo com o que podemos designar por descriminação social. Serve de grande exemplo a guerra civil dos EUA para liquidação da escravatura, que levou ao assassinato de vencedor Presidente Lincoln, mas a discriminação social, que levou ao assassinato de Luther King, exigiu, no ano de 2020, que a sua neta, jovem de uns doze anos, se erguesse no Monumento de Lincoln, repetindo as palavras históricas do avô, para que o cumprimento da lei seja finalmente um facto.

É esta contradição, entre a clareza da Constituição e direito cívico vigente, e a lenta marcha para a global vigência, que implica o conflito entre o estatuto vigente dos homens, e a distância dessa igualdade pelas mulheres, o que também acontece na ordem internacional. Na exigente política das navegações, descobertas e conquistas, a relação com o mar levou a que a poesia lembrasse "as noivas que ficaram por casar", mas, para acolher memórias, suscita-se a discussão das condições sofridas a bordo pela marinhagem, os tempos de ausência, a limitação dos que conseguiam regressar. Talvez seja de pensar nas "viúvas de homens vivos" que assumiram as exigências cívicas e familiares, em casa, com os filhos, no campo com o trabalho, no templo com a devoção. Decidi dedicar-lhes um monumento na Ilha de Moçambique, mas os factos diminuíram o tempo, e a estátua existe, mas recebeu outro nome e função.

A guerra de África, que fez parte da oposição política à decisão da ONU, de acabar com o Império Colonial Europeu, de novo manteve difícil a intervenção das mulheres, mas foi extraordinária a mobilização feminina para as intervenções de resposta aos apoios impostos pelos deveres éticos. Mas a história portuguesa tem naquela situação uma resposta feminina histórica, que foi a formação militar do corpo de Enfermeiras da Força Aérea, todas oficiais. Foram notáveis com ações ao lado das forças de intervenção, apoiavam os feridos sem distinguir nem a etnia nem a atitude política. Fizeram aqui, já retiradas, um encontro em que foi lançado um livro com depoimentos de cada uma delas, e não deixaram de referir, com zelo, o cuidado que tiveram com uma camarada vítima de acidente com o avião já aterrado, e não deixaram de enriquecer a crónica organizada com a garantia de tratarem o seu corpo de modo que se mostrasse bela como sempre fora.

Factos destes, obrigam a recordar o curso que fiz na Faculdade de Direito de Lisboa. Julgo que estudantes femininas eram quatro. Excelentes alunas, tinham uma sala privativa para os intervalos, mas sem visitas, e na sala de aulas entravam e saiam primeiro. Ocupávamos aquelas antigas carteiras para dois alunos, mas uma ficava vazia em relação às que elas ocupavam. As carreiras dos licenciados não eram fáceis, algumas não permitiam o casamento, e este tinha limitações que ainda são recordadas, designadamente a autorização marital em todas as circunstâncias da vida corrente. Esta situação, que não foi exclusiva aqui, mas está na memória dos vivos, de diferença, entre mulheres e homens, tinha uma avaliação por filósofos e psicologistas, uns não vendo diferença entre sexualidade animal e sexualidade humana. Todavia, na evolução ocidental, é o respeito pela lei constitucional que obriga a remeter para a história do passado as antigas submissões, costumes e estilos, que são discutidos para encontrar as novas regras que, sem impedir o casamento e protegendo a instituição "família", na qual os deveres e direitos necessitam de ser redefinidos, em termos de serem específicos os deveres quanto aos filhos, com respeito pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, e obediência à Constituição. Esta não tem que impedir a liberdade religiosa, para a qual o Papa Francisco é o bom evangelista, por duas vezes chamado, como vários dos seus antecessores, a pronunciar-se, neste tempo perigoso de hoje, sobre "a terra casa comum dos homens", isto é, "seres vivos", e "o credo dos valores" acima dos egoísmos.

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