Da França à Alemanha, e em toda a UE, os riscos são enormes e os desafios são para ganhar

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A França vive uma crise política muito grave. A dissolução da Assembleia Nacional, decidida a 9 de junho de 2024 pelo Presidente Emmanuel Macron, foi uma aposta que surpreendeu a classe política e que se revelou errada. Desde então, já passaram pelo poder quatro primeiros-ministros. O último, Sébastien Lecornu, formou um governo no domingo à noite e pediu a demissão na manhã seguinte. Um recorde absoluto, que mostra bem o impasse em que o país se encontra.

As elites políticas estão agrupadas em dois campos extremos: o partido de Marine Le Pen e uma coligação de forças mais ou menos radicais de esquerda, com Jean-Luc Mélenchon como figura de proa. O pouco que resta, o centro, está fragmentado à volta de meia dúzia de políticos que não se conseguem entender. Várias dessas personalidades, assim como Le Pen e Mélenchon, estão convencidas que poderão suceder a Macron na chefia do Estado. Querem que Macron renuncie sem demoras à presidência da República. Oficialmente, este seu segundo mandato deve terminar em maio de 2027. Agora, em virtude da gravidade da crise, até os seus aliados políticos já afirmam que a solução do impasse passaria pela saída antecipada do presidente do poder.

Não creio que isso venha a acontecer. Macron pode não querer reconhecer que a sua popularidade anda pelas ruas da amargura. A sondagem desta semana conclui que apenas 14% dos franceses apoia a sua política. É uma percentagem catastrófica. Macron acredita, no entanto, que tem a legitimidade constitucional necessária para continuar.

Numa situação de crise profunda como a atual, e no caso de Macron voltar a optar, nos tempos mais próximos, por eleições parlamentares antecipadas, seria possível que a extrema-direita de Marine Le Pen conseguisse obter o maior número de deputados. O seu partido aparece, perante uma parte significativa do eleitorado, como mais estável que a esquerda, que é uma colagem frágil de diversas opiniões políticas.

De qualquer modo, quer num caso quer no outro – presidenciais antecipadas, ou novas eleições parlamentares – a França está à beira de cair no fosso de um caos profundo, entalada entre dois polos ultrarradicais. Desta vez, o risco é muito sério. Sendo que a probabilidade maior é a França, um dos dois pilares da União Europeia, vir a ser dirigida por um partido radical, ultranacionalista, hostil ao projeto europeu, xenófobo e ideologicamente próximo de Vladimir Putin.

O outro pilar da Europa é a Alemanha. Friedrich Merz, chanceler desde maio, está em queda constante junto da sua opinião pública. Apenas 26% dos eleitores acreditam na sua capacidade para resolver os problemas considerados mais preocupantes: o custo de vida, a habitação, a imigração e a estagnação económica. A economia alemã registou uma contração em 2023 e 2024, com setores como a construção e a indústria a recuarem para níveis de meados da primeira década de 2000. O motor da economia, a indústria automóvel, está cerca de um terço abaixo do auge de há 15 anos e voltou a níveis próximos dos meados dos anos 2000, refletindo perda de competitividade e mudanças estruturais profundas no setor.

Numa discussão recente com analistas alemães, foi-me dito que a impopularidade de Merz e da sua coligação está a pavimentar o caminho que levará a extrema-direita ao poder em 2029 ou mesmo antes. Este ano, a AfD (Alternativa para a Alemanha, partido liderado por saudosistas nazis) obteve o segundo lugar, com quase 21% dos votos. O descontentamento crescente dos cidadãos, a competição com a economia chinesa, as tarifas e as restrições impostas pelos americanos, os gastos com a ajuda à Ucrânia, o apoio flagrante aos extremistas alemães de direita dado por Donald Trump, que vê na AfD uma maneira de minar seriamente a unidade europeia, a propaganda crescente contra os estrangeiros residentes na Alemanha, tudo isto são fatores que reforçam a base eleitoral desse partido racista e de inspiração nazi. Sem esquecer que a AfD mantém relações privilegiadas com o Kremlin.

As encruzilhadas em que se encontram quer a França, já, quer a prazo a Alemanha, representam dois enormes desafios para a sobrevivência da UE. São incomparavelmente mais preocupantes que as consequências do Brexit ou as sabotagens do húngaro Viktor Orbán e do eslovaco Robert Fico. Surgem numa altura em que a UE enfrenta uma série de problemas existenciais de origem externa.

Os inimigos externos são conhecidos. O temor e as cedências são as piores respostas que lhes podem ser dadas. Os inimigos e os adversários devem ser tratados com muita habilidade estratégica e uma união reforçada, só alcançáveis se os líderes da UE conseguirem explicar e provar aos cidadãos a importância da união e da coesão europeias.

A cena internacional é muito maior do que os EUA, a Rússia ou a China. A expansão dos acordos com o Japão, o Canadá, o Mercosul, o continente africano e o ASEAN deve merecer uma atenção prioritária. Esta lista não procura excluir outros parceiros, menciona apenas alguns especialmente importantes.

O futuro exige igualmente que se restrinja resolutamente a dependência excessiva do exterior nas áreas da defesa, das tecnologias, das plataformas digitais, da energia e das matérias-primas essenciais para a transição energética. Desburocratizar, inovar e promover a complementaridade das economias europeias é fundamental. Tudo isto deve ser feito ao mesmo tempo que se combatem os extremismos. Pensar que os extremistas jogarão segundo as regras democráticas, uma vez chegados ao poder, é uma perigosa ilusão. Denunciar essa ficção é agora a prioridade urgente em França, e a prioridade constante em todos os Estados-membros, Portugal incluído.

Conselheiro em segurança internacional.

Ex-secretário-geral-adjunto da ONU

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