Enquanto os políticos, nas televisões, continuam a argumentar em função daquilo que outros políticos disseram, também nas televisões, os seus jogos florais acontecem como se a cultura não existisse. Não a cultura dos prémios, das efemérides ou do prestígio que a todos reconforta. Apenas a cultura enquanto facto (também) político. Discute-se o Orçamento Geral de Estado, os cidadãos vão eleger um novo Presidente da República, mas a expressão “política cultural” foi rasurada de intermináveis debates aprisionados nas suas penosas redundâncias. Os analistas políticos praticam o mesmo esquecimento, ocupados que estão a decifrar se o espirro de um político incauto é de esquerda ou de direita — sem que isso os impeça de fazer um intervalo nas suas performances para surgirem como comentadores do futebol, aparentemente, importa reconhecê-lo, com uma postura francamente mais feliz e comunicativa. Sendo televisiva — porque a política se acomodou nas lógicas novelescas dos pequenos ecrãs —, a questão está longe de ser banalmente programática ou comunicacional. No seu limite mais trágico, de que já não estamos muito distantes, a rarefação da cultura (a começar pela palavra “cultura”) na saturação de análises políticas em que somos obrigados a viver envolve algo mais fundo, infinitamente mais perturbante. A saber: o esvaziamento cultural do espaço público corresponde a uma desvalorização implícita das singularidades dos gestos artísticos — e, por fim, ao assassinato simbólico da arte e do seu desejo. Muitos criadores, sobretudo os mais jovens, falam mesmo do seu trabalho como se estivessem a cumprir um caderno de encargos alheio a qualquer risco artístico. Aparecem nas televisões e limitam-se a fornecer um inventário de “temas” que satisfaçam as modas mediáticas, da defesa de alguma minoria ameaçada até à celebração da liberdade. Não que uma coisa e outra não justifiquem atenção e empenho. Resta saber o que aconteceu quando já não há pensamento ativo nem perturbação genuinamente artística — apenas um obsceno moralismo universal disfarçado de autoridade artística. Lembremos, por isso, aquilo que a personagem de Julia Roberts (no filme Depois da Caçada) diz a uma jovem que sente o seu conforto posto em causa pela complexidade do mundo à sua volta: “Nem tudo é suposto deixar-te confortável.” .A postura artística é, por princípio, arriscada, incerta e vulnerável. Se não o for, em boa verdade já não tem nada de artístico e, por estes dias, apenas serve para alimentar os talk shows televisivos em que, cinco vezes por semana, são reveladas obras-primas de coisa nenhuma. Num belíssimo ensaio publicado em 1945, “A dúvida de Cézanne”, Maurice Merleau-Ponty ensinava-nos algo bem diferente, lançando, assim, a sua reflexão sobre o trabalho do pintor: “Eram-lhe necessárias cem sessões de trabalho para uma natureza morta, cento e cinquenta sessões de pose para um retrato. Aquilo que chamamos a sua obra não era para ele mais do que o ensaio e a aproximação da sua pintura.” O artista é aquele que nos convoca, não para partilhar uma satisfação consumista, antes desnudando a insatisfação existencial que o próprio desejo criativo transporta. O artista é político não por exprimir o que quer que seja vindo da classe política (mesmo dos seus membros mais talentosos), mas porque pensa, age, pinta, escreve ou filma fora dos parâmetros dessa classe e do seu labor. Ainda Merleau-Ponty: “Cézanne não considerou ser seu dever escolher entre a sensação e o pensamento, nem entre o caos e a ordem. Ele não quer separar as coisas fixas que surgem ao nosso olhar da sua maneira fugaz de aparecer, ele quer pintar a matéria a tomar forma, nascendo a ordem através de uma organização espontânea.” Perdemos o gosto dessa (outra ideia de) ordem que os objetos artísticos contêm ou podem conter. Nos discursos políticos instalou-se mesmo um misto de vergonha intelectual e falso pudor que, para satisfazer as muitas formas de ignorância potenciadas pelo politicamente correto, repele a palavra “ordem” como algo que nos faz perder o mundo. Assim se esquece que a arte, na sua desordem interrogativa, é também uma maneira de pressentir uma possível reordenação do mundo. “Mais Cézanne nos ecrãs de televisão” — eis uma sugestiva palavra de ordem. Jornalista