“Cursus honorum”

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Trajano (53-118), imperador honrado como Optimus Princeps, era originário – tal como o seu sucessor Adriano - duma das províncias em que se dividia, sob Roma, a Península Ibérica: nasceu perto da actual Sevilha, na Bética. David Soria Molina acaba de publicar, sobre ele, uma obra monumental que constitui, também, uma visita não só às estruturas políticas, administrativas e militares do Império, como também ao que então ainda se mantinha da herança republicana: uma exigente sequência de cargos desempenhados a preceder o acesso a posições de topo (“cursus honorum”). Antes de ser proclamado Augusto, aos 45 anos, para lá dos seus feitos, Trajano tinha sido – para só citar alguns cargos – tribuno, questor, pretor e várias vezes (não consecutivas, em obediência às regras) cônsul. Este Trajano, el Mejor Emperador será sempre de proveitosa leitura onde quer que se trate de escolher um “supremo magistrado”.

Entre nós, nas três décadas que foram da reeleição de Eanes à de Cavaco Silva, a competição pelo cargo contou sempre com, pelo menos, um concorrente que incluía no seu “cursus honorum” o anterior desempenho ou já do cargo de Presidente ou do de Primeiro-Ministro, quando não dos dois. E só no caso em que a opção se colocou entre um ex-Primeiro Ministro e Jorge Sampaio os eleitores escolheram fora dessa estreita faixa.

Deixou de ser assim na primeira eleição do actual Presidente, ministro dos Assuntos Parlamentares em período distante (1981-82). Nenhum dos candidatos preenchia, já então, o requisito anterior. Poderia tratar-se de uma circunstância sem significado: de Mário Soares em diante tinha passado a ser traço comum aos escolhidos a condição de ex-líder partidário e, no caso do eleito, estava também presente, em tempo também longínquo, esse requisito.

Constitui singularidade nossa que todos os Presidentes, desde a entrada em vigor da Constituição, se tenham candidatado à reeleição e que tenham, sem excepção, sido reconduzidos (em rumo oposto, diga-se, às velhas preocupações da República romana). Isso acabou por inscrever uma sensível diferença entre a primeira eleição e a subsequente, abrindo-se os ciclos presidenciais, na ordem dos factos, de 10 em 10 anos. Estamos, assim, na abertura dum novo ciclo (que poderá, claro, ter ou não essa duração).

Pelo que se sabe dos concorrentes à próxima eleição, não se recuperará o padrão anterior. Depois de Cavaco Silva, que disputou o cargo por três vezes e saiu já de São Bento em 1995, nenhum outro ex-Primeiro-Ministro se candidatou à Presidência. Manter-se-ão na competição líderes partidários, e também distantes, mas todos provenientes agora do grupo dos que não exerceram a chefia do governo. Há diversos factores por detrás da ausência de ex-PMs mas é fácil admitir que perfis e vocações têm menos relevo do que o efeito de atracção exercido por cargos europeus ou internacionais.

Tudo isto aparenta ter pouco a ver com os critérios republicanos, a “provincialização” em modo romano ou os créditos patrícios de Trajano e Adriano. Mas talvez possa um dia ser narrado como se, por estes anos, um novo “cursus honorum” estivesse a implantar-se e o lugar de “supremo magistrado” duma das nações ibéricas passasse a ser disputado numa faixa em que a alternativa dos “top jobs” está fora de causa.

Jurista, antigo ministro. Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico

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