South Park: na cama com Satanás.
South Park: na cama com Satanás.

Cultura & televisão, ‘made in’ USA

A representação de Donald Trump na série 'South Park' revela-nos a televisão como entidade cultural, por excelência.
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Nestes dias atribulados, qual o cenário nuclear de todos os combates políticos? A resposta é simples e linear, simples na sua evidência, linear nos seus efeitos: o cenário em que acontece o essencial das lutas políticas do nosso tempo é o espaço televisivo. Entenda-se: não o canal televisivo A, B ou C, mas um espaço imenso, transversal e omnipresente em que se dirimem os valores sociais das nossas existências, isto é, as dinâmicas culturais. Ou ainda: apesar (ou por causa) dos seus contrastes e contradições, a televisão define as componentes essenciais da cultura — a televisão é a cultura dominante dos nossos dias.

Há contextos, como o português, em que tal identidade cultural é sistematicamente recalcada pela maioria dos agentes sociais, a começar pelos partidos políticos. Noutros, cultura & televisão são vividas e, de algum modo, todos os dias transfiguradas como elementos ativos do coletivo. Não é uma virtude, mas também não é um defeito — tão só o reconhecimento de que, para o melhor ou para o pior, os ecrãs (televisivos e não só, importa lembrar) passaram a ser os lugares determinantes de tudo aquilo que somos e fazemos, pensamos ou evitamos pensar.

Eis um exemplo recente. Há cerca de uma semana, nos EUA, a série de animação South Park, de Trey Parker e Matt Stone, iniciou a sua 27ª temporada no canal de cabo Comedy Central com um episódio centrado na personagem de Donald Trump, representado com virulento sarcasmo, algures entre a caricatura mais radical e várias referências a elementos muito concretos da sua ação.

Vemo-lo como figura histérica da Casa Branca, partilhando o seu leito com... Satanás. Várias vezes apresentado em nu frontal, Trump é gozado por Satanás, primeiro a propósito do seu envolvimento no caso Epstein, depois por causa do tamanho do seu... pénis (o sexo de Trump irá mesmo surgir enquanto “personagem” com vida própria, a que não faltam dois olhos). Tudo isto pontuado por uma “descida” de Jesus Cristo a South Park, chamando a atenção para os poderes de cancelamento de Trump, por isso aconselhando os cidadãos a não se irritarem com ele para não lhes acontecer o mesmo que aconteceu com Stephen Colbert e o seu The Late Show.

O artifício visual — as figurinhas são tratadas com o traço e os movimentos “mecânicos” das personagens clássicas de South Park — não anula, antes reforça, os elementos factuais do episódio: é mesmo verdade que o programa de Colbert foi cancelado (para encerrar em maio de 2026), aliás desencadeando mais um acalorado debate sobre a liberdade de expressão na sociedade americana. E também é verdade, e uma verdade muito perturbante, que o dossier de Jeffrey Epstein (predador sexual que morreu na prisão, em 2019, alegadamente num suicídio que volta a ser objeto de muitas análises e especulações) tem assombrado as últimas semanas da presidência de Trump.

Com um perverso dado complementar: o episódio com que abriu a 27ª temporada de South Park foi o primeiro ao abrigo de um acordo de cinco temporadas recentemente consumado entre Parker/Stone e a Paramount, no valor de 300 milhões de dólares... por temporada (segundo dados citados pela Variety, em artigo de 24 de julho).

Isto sem esquecer que a CBS do programa de Colbert e o Comedy Central de South Park pertencem ao mesmo universo Paramount, por sua vez citado, de forma nada graciosa, no próprio episódio de South Park que desencadeou tudo isto. Convém acrescentar que, recentemente, por causa de uma acusação interposta por Trump (motivada pela montagem de uma entrevista a Kamala Harris durante a última campanha presidencial), a Paramount indemnizou o próprio Trump em 16 milhões de dólares — em “paralelo”, por estes dias, a Paramount necessita da concordância da administração Trump para concluir um processo de fusão com a Skydance Media, negócio com valor estimado em oito mil milhões de dólares.

Como diria o outro... “isto é televisão!” Mais que tudo, creio que a descrição do espaço televisivo como uma mera acumulação de “notícias” e “análises”, além de inapelavelmente ingénua, passa ao lado da complexidade estrutural e comunicacional das nossas relações com os ecrãs que consumimos. Para compreendermos melhor tal complexidade, necessitamos de superar a visão angélica da cultura como território virginal das “artes” e dos ”artistas”. Dito de outro modo: os ecrãs não são máquinas neutras de difusão de factos, mas entidades criadoras de cultura.

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