Bendito seja o YouTube! Enfim, passou a ser chique entrar numa conversa e fazer saber que nos sentimos vítimas impotentes do universo digital em que estamos condenados a viver - claro que o “outro” será sempre mais alienado do que “eu”, porque sou “eu” que estou a teorizar sobre as desgraças do mundo...Bendito seja o YouTube, de facto. E não por qualquer razão “teórica”. Até porque, convenhamos, os respetivos vídeos refletem valores inconciliáveis, entre a pura alegria de partilhar algumas formas de saber (conhecem a página do guitarrista e professor Rick Beato?...) e os mais ofensivos disparates (há mesmo personagens de todos os recantos do planeta que se colocam em frente de uma câmara, exibem a sua abissal ignorância sobre a história e as linguagens do cinema, ao mesmo tempo que se apresentam como “críticos”...)..Com singela ironia, o YouTube pode materializar a célebre máxima de Pablo Picasso sobre as suas pesquisas artísticas: “Eu não procuro, encontro.” Procurar uma coisa e encontrar outra, eis o que pode ser compensador, por vezes divertido, até para nos fazer resistir à (des)informação que tenta convencer-nos que os jornalistas, “em tempo real”, possuem as chaves de decifração de tudo o que acontece - a esse propósito, continuo sem saber o que será o “tempo irreal”.Um dia destes, muito para lá daquilo que procurava, encontrei uma entrevista de Umberto Eco (1932-2016), no programa “7 Sur 7” da televisão francesa, com Anne Sinclair. Como frequentemente acontece no YouTube, conhecia um extrato, mas nunca tinha acedido à duração total da entrevista. Falando sobre aquilo que poderá ser uma nova “cultura de massas”, Eco recorda que, “há algumas dezenas de anos, discutia-se qual poderá ser o papel dos media no mundo.” Ora, algo mudou: “Agora, os media são o mundo. Antes, os media falavam do mundo, agora os media falam dos media (estamos aqui a falar dos media) e o mundo vive para conseguir entrar nos media.”Será que há um contido humor nesta descrição? Nada disso: “Não estou a brincar”, esclarece Eco. E acrescenta: “Tudo se passa como se o planeta inteiro se tivesse transformado num objeto de produção de notícias e espetáculo através dos media. Vivemos nisso como fantasmas.” No limite, estamos perante “uma religião a ser refeita”, já que “a própria divindade se tornou eletrónica.”Dir-se-ia que Eco estava a descrever a miséria intelectual e discursiva em que passou a existir a vida política portuguesa. Não se trata, entenda-se, de negar os méritos das personalidades realmente brilhantes que vão pontuando essa vida. Acontece que todos tendem a ser envolvidos (e, de algum modo, igualados) numa mesma dependência televisiva. Resultado prático: tornou-se quase impossível falar de política na televisão. A maior parte dos programas de “análise” tendem a ser organizados como reflexo automático (em loop) daquilo que o espaço televisivo difundiu na véspera ou, sem exagero, um minuto antes. A “velocidade” passou a ser um valor divino.A atualidade das palavras de Eco é tanto mais perturbante quanto a conversa com Anne Sinclair foi emitida há mais de trinta anos, na TF1, no dia 17 de junho de 1990. Quer isto dizer que há universos políticos que, submetendo-se a uma rudimentar religião mediática, congelaram nas convulsões da história em que algum jornalismo “analítico” os aprisionou.Como sair desse impasse? Eco não tem, nem pretende ter, soluções milagrosas, mas não deixa de dizer, implicitamente, que importa discutir (não demonizar, mas realmente discutir) os pressupostos desse jornalismo. É a própria Anne Sinclair que o recorda quando refere que alguém, representante desse jornalismo enquistado na sua preguiçosa formatação de ideias, lhe perguntou porque é que ele tinha escolhido o título O Nome da Rosa para um dos seus romances. A resposta de Eco não podia ser mais esclarecedora: “Pinóquio já estava tomado”.Jornalista