Colocar as pessoas no centro da Administração Pública é mais do que um slogan simpático. É uma transformação profunda, que começa longe dos balcões e dos portais digitais, exigindo coragem para mexer no back office do Estado. O que interessa ao cidadão não é quantos organismos existem, mas sim se os seus problemas são resolvidos de forma simples, sem redundâncias, sem labirintos burocráticos e sem a obrigação de ser ele próprio o elo de ligação entre serviços que não colaboram.O grande obstáculo continua a ser a fragmentação institucional. Cada ministério, direção geral ou instituto protege o seu território, guarda os seus dados e constrói os seus sistemas como se fossem fortalezas isoladas. O PRR, que poderia ter sido um catalisador da mudança, acabou em muitos casos por agravar esta tendência. Em vez de promover projetos transversais e soluções partilhadas, estimulou uma corrida a fundos, em que cada organismo procurou garantir a sua fatia. A consequência foi a multiplicação de plataformas redundantes, a criação de soluções incompatíveis e a consolidação dos velhos silos de poder e vaidade.Assim, o que deveria ser uma agenda de simplificação tornou-se uma sucessão de investimentos fragmentados, mais preocupados em cumprir calendários de execução do que em responder aos eventos de vida das pessoas. Continuamos a ver cidadãos obrigados a entregar várias vezes a mesma informação, apesar de o Estado já a ter, e a percorrer corredores digitais que apenas reproduzem as dificuldades do atendimento presencial. A digitalização, em vez de libertar, corre o risco de sofisticar a burocracia.Para inverter este caminho, precisamos de muito mais do que boas intenções ou retórica sobre a inclusão digital e o omnicanal. Essas dimensões são cruciais, mas não resolvem o problema de fundo. É no back office que tudo se decide e é aí que se deve desmaterializar processos, desintermediar fluxos e assegurar que a informação circula de forma segura e confiável entre organismos. A interoperabilidade não é um detalhe técnico, é a condição para que o Estado funcione como uma entidade única e não como um arquipélago de sistemas isolados.E aqui chegamos à questão da liderança. Portugal não precisa apenas de mais tecnologia, precisa de uma governação digital forte, com autoridade e visão. O governo optou por uma abordagem mais fácil de CTO, centrada na compra de mais equipamentos e soluções, limitando-se a gerir projetos e investimentos. O que precisamos é de uma lógica de CIO, com alguém que pense estrategicamente a informação, que defina padrões comuns de dados e processos, que garanta a interoperabilidade e que imponha uma arquitetura única e transversal ao Estado. Este é o verdadeiro sentido de colocar as pessoas no centro, não é encher o front office de portais, mas transformar a engrenagem invisível que sustenta cada serviço. Um Estado que funcione de forma integrada, que partilhe dados de forma responsável e que elimine redundâncias é um Estado que liberta tempo, energia e confiança aos cidadãos. O PRR ainda poderia ser parte dessa solução, se fosse recentrado em plataformas comuns, em infraestruturas partilhadas e em métricas de impacto real na vida das pessoas. Mas, para isso, é preciso liderança.Sem essa mudança, arriscamos transformar o PRR numa oportunidade perdida, com muito investimento em tecnologia e pouca mudança visível no quotidiano. Com ela, podemos finalmente ter uma Administração Pública moderna, justa e eficaz, em que os organismos cooperam em vez de competir e em que o cidadão não é cliente de balcões, mas protagonista de uma relação simples com o Estado. Para isso, mais do que nunca, precisamos de um CIO capaz de recentrar toda a máquina pública no único objetivo que é servir o cidadão.Especialista em governação eletrónica