Coesão e Constituição

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É de pressupor que a Constituição seja suficientemente conhecida pelos que, em nosso nome,  participam, a algum título, no processo que conduzirá ao próximo quadro financeiro da União – o que inclui a definição do nível de prioridade e parâmetros a observar na prossecução do objectivo europeu "coesão económica, social e territorial". Mas não é de presumir que seja conhecido por parte de muitos, e tido em devida conta, o particular relevo que a nossa lei fundamental, diferentemente da generalidade delas, reconhece a essa matéria. E menos ainda a sua origem, que é especialmente responsabilizante para quem governa.  

Foi o Tratado de Maastricht - não tanto por instituir formalmente a UE mas sobretudo por vir abertamente contender com a tradicional soberania monetária dos Estados-membros – que fez despertar muitos do estado de "inconsciência constitucional" que vinha a rodear a transferência de poderes  para Bruxelas. Como tantos outros, fiquei com a convicção de que, do nosso lado, quem negociava não representava claramente que o que estava a ser acordado colidiria de frente com normas constitucionais.(E esse não foi caso único, registe-se: o TPI seria apenas o mais conhecido). Alcançado o acordo, chegou a vez de pensar a sério na ratificação – e foi então, como aconteceu também noutros países, que fizemos a revisão constitucional. 

Para podermos ratificar, era necessário que a Constituição passasse a autorizar que, por tratado, sob certas condições, se acordasse o "exercício em comum" de poderes, neles incluindo, sem margem para dúvidas, poderes a que sempre se reconhecera natureza soberana. A menção até aí existente ao "reforço da identidade europeia" era insuficiente para aí chegar. Ao tempo, num certo número de países, eram já tema as necessárias "transferências de soberania" e os requisitos que exigiriam. 

Era tudo menos um pequeno passo: havia aliás, por isso mesmo, também entre nós, em vários campos e com diversas motivações, muitos defensores do recurso ao referendo. Para quem o não reclamava, impunha-se inscrever na Constituição o objectivo que conferia justificação  a esse passo. Foi então que os deputados do PSD e do PS que prepararam essa "revisão europeia da Constituição" (1992) acordaram numa solução que o plenário da Assembleia da República viria a aprovar: a autorização constitucional para o "exercício em comum" seria dada com a explicitação de que o era "tendo em vista a coesão económica e social". Com esse fim nela se abarcavam os "poderes necessários á construção da união europeia". Acrescente-se que foi só numa outra revisão, mais de uma década depois, que se viria a explicitar também a dimensão territorial, atingindo-se a fórmula que hoje se lê na Constituição ("coesão económica, social e territorial"). 

A nossa credencial constitucional para a União é singular: desde o primeiro momento que é orientada para um fim que vincula o exercício "em comum" dos poderes abrangidos. Soluções que consagrem uma evolução da União Europeia que subalternize ou prejudique a "coesão económica, social e territorial" irão em sentido oposto ao que, primordialmente, orientou a luz verde constitucional dada à participação na construção dela. Ninguém pense que, nessa eventualidade, as consequências possam ser nenhumas. 

Nota: Quero aqui registar, a crédito do Parlamento Europeu, que a resposta a uma  interrogação aqui formulada em 6 de Agosto veio a ser  positiva : o procedimento no Tribunal de Justiça  acabou por ser  intentado em prazo e  a exclusão do Parlamento no processo legislativo, no  caso do ReArm ( regulamento SAFE) irá mesmo ser objecto de apreciação quanto à sua conformidade ao Tratado e aos princípios democáticos.

Jurista, antigo ministro.

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico

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