Quando se vê que o PIB chinês é quase cinco vezes maior do que o japonês, parece inacreditável que a ultrapassagem tenha acontecido apenas em 2010, quando a China se tornou a segunda economia mundial, ainda hoje atrás dos Estados Unidos, e o Japão desceu para terceira maior (é atualmente a quarta, depois de ceder a posição à Alemanha, e está prestes a descer para quinta, por troca com a Índia).Portanto, a ascensão chinesa, iniciada com as reformas económicas lançadas por Deng Xiaoping no final da década de 1970, assumiu contornos geopolíticos de extrema importância na última década e meia. E a recente disponibilidade dos governantes de Tóquio para aumentar as despesas militares tem tanto que ver com as pressões do aliado americano como com a perceção, até numa opinião pública tradicionalmente pacifista, dos riscos de ter um vizinho hiperpoderoso, com um PIB que lhe permite suportar um orçamento de Defesa cerca de seis vezes superior.O facto de China e Japão serem importantes parceiros económicos não impede que continuem a ser rivais históricos, e as recentes declarações da primeira-ministra japonesa Sanae Takaichi sobre um conflito em Taiwan poder envolver o Japão se o país se considerasse em risco criaram uma crise com Pequim que tarda em ser resolvida. Houve palavras duras entre diplomatas dos dois países até nas Nações Unidas, e medidas retaliatórias afetando a importação de produtos japoneses para a China. Um pedido formal de desculpas pela chefe do governo japonês está a ser exigido pela China, que considera que Takaichi se envolveu nos assuntos internos chineses. Para Pequim, Taiwan é uma província rebelde, que lhe escapa ao controlo desde o fim da guerra civil chinesa em 1949. A reunificação, inclusive pela força se necessário, é um ponto de honra para o regime comunista chinês. Qualquer tipo de incentivo ao independentismo taiwanês é gravíssimo para Pequim, e as palavras de Takaichi foram interpretadas nesse sentido, mesmo que Tóquio não tenha relações oficiais com a ilha.É interessante que esta crise entre Pequim e Tóquio esteja relacionada com Taiwan. A ilha a que os navegadores portugueses chamaram de Formosa, situada frente a Fujian, foi sendo povoada a partir da costa chinesa ao longo de séculos, especialmente a partir do XVII. Mas em 1895 passou para o Japão, no final de uma guerra entre as duas nações asiáticas. Essa Guerra Sino-Japonesa é menos conhecida do que a Guerra Russo-Japonesa de 1905, da qual o Japão também saiu vencedor. Reaberto ao mundo em meados do século XIX, o Japão modernizou-se rapidamente e tornou-se uma potência militar. A vitória sobre a Rússia foi notícia mundial, pois uma nação asiática derrotava uma nação europeia numa época de expansão colonial, mas a prévia vitória sobre a China implicava o irmão menor derrotar a irmã maior. Subitamente, o Japão emergia como o mais poderoso país da Ásia, enquanto a China, ainda governada pela dinastia Qing, estava decadente, semicolonizada até por vários países europeus.Em 1895 iniciava-se assim um período de supremacia japonesa que nem a derrota na Segunda Guerra Mundial pôs totalmente em causa, pois em 1945 a China, embora entre os vencedores, estava destruída por décadas de ocupação e guerras e prestes a mergulhar numa guerra civil entre comunistas e nacionalistas, os quais, derrotados, se refugiaram em Taiwan, já libertada do jugo japonês. O Japão, por seu lado, embora derrotado, ficou como novo aliado dos Estados Unidos, o que permitiu depois uma recuperação económica milagrosa. Essa supremacia simbolicamente terminou em 2010, quando o PIB chinês ultrapassou o japonês. A China voltava a ser a mais rica nação no Oriente (mas não per capita), também depressa a mais poderosa, investindo, por exemplo, numa marinha com porta-aviões, o que levou há poucos anos o Japão a apostar, apesar da Constituição pacifista imposta pelos americanos, em porta-helicópteros.No poder desde 1949, o Partido Comunista Chinês mantém na agenda as queixas históricas contra o Japão. Praticamente, fazem parte da lógica nacionalista que pouco a pouco vai substituindo a ideologia comunista. Mao Tsé-tung, o fundador do partido e da República Popular, foi um dos manifestantes que em maio de 1919 protestaram contra a entrega das possessões alemãs ao Japão, caso da província de Shandong. Nas datas que os chineses nunca esquecem está também dezembro de 1937, quando as tropas japonesas iniciaram o que ficou conhecido como o Massacre de Nanquim. Como notava em recente entrevista ao DN o historiador britânico Christopher Harding, a China continua a produzir filmes sobre a Segunda Guerra Mundial, anti-japoneses obviamente. Ao mesmo tempo, acrescentava Harding, uma das retaliações às declarações de Takaichi foi atrasar a exibição de alguns filmes japoneses, que dão uma outra imagem do país, o construído depois de 1945, muito mais afável.Um conflito entre a China e o Japão seria trágico para ambos os países e certamente desastroso para o resto do mundo. As lideranças em Pequim e em Tóquio sabem disso, e de certo modo tendem a ser cautelosas. O momento atual é excecional, mas ilustra bem a tensão existente. E a garantia maior de que não se passa da escalada verbal (controlada, apesar de tudo) a outro tipo de escalada é a presença americana na Ásia Oriental. Os Estados Unidos são um aliado do Japão e um rival da China, mas a necessidade da proteção destes (até com o guarda-chuva nuclear) obriga os japoneses ao bom senso, enquanto a sua força continua a pôr a China em sentido, pois tanto o seu arsenal nuclear como o convencional continua muito aquém do americano, até em número de porta-aviões. A visita de Donald Trump a Tóquio, onde foi evidente a boa relação com Takaichi, não deixa de ser um recado do presidente americano tanto à primeira-ministra japonesa como ao presidente Xi Jinping: armem-se, mas não se confrontem. Claro, que, entretanto, Trump anunciou venda de armas a Taiwan, o que trará novas tensões, agora entre Washington e Pequim.Diretor adjunto do Diário de Notícias