Centenofilia

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Existem razões atendíveis para que se tenha simpatia por Mário Centeno e para que se lhe reconheça mérito na sua já duradoura incursão pela política. Foi o ex-ministro das Finanças que ajudou a travar a fúria despesista do PS, ainda para mais quando António Costa se rodeou daquela nouvelle vague nascida e criada na “jota” que, à semelhança das criancinhas, acredita que se carrega num botão e o dinheiro brota de terminais Multibanco.

Embora tenha beneficiado do alisamento do terreno feito pelos antecessores no cargo, foi com Centeno que no Portugal democrático se alcançou o primeiro superavit orçamental e foi também devido à sua ação que se iniciou a trajetória consistente de redução da dívida pública em percentagem do PIB.

Todavia, nem uma nem outra façanha foram conseguidas sem artimanhas próprias de quem tem pouco apego às suas convicções, não leva muito a sério o papel fiscalizador da Assembleia da República e, no limite, não toma a verdade como algo relevante na relação entre o poder executivo e os cidadãos. Mais recentemente, a propósito do folhetim sobre a recondução para o Banco de Portugal, veio à colação um outro ardil, mas vamos por partes.

Primeiro engano: o de que viraria a página da austeridade a que, segundo a doxa, Pedro Passos Coelho, Vítor Gaspar e Maria Luís Albuquerque estavam presos. Só que os factos são teimosos e o país entre 2015 e 2020 (último de Centeno no Terreiro do Paço) registou recordes de carga fiscal (soma da receita com impostos e das contribuições sociais), superando os anos da troika.

Segundo logro: o do que os serviços públicos não foram sacrificados. Não sou eu nem nenhum “perigoso neoliberal” a dizê-lo, são as entidades competentes, como o INE. Enquanto as despesas com pessoal dispararam – e a estratégia de comprar os votos das corporações terá compensado -, nos anos em que o leite e o mel jorravam pelas paredes e em que a imprensa dedicava hossanas à sociedade Costa&Centeno o investimento público em percentagem do PIB ficou abaixo do período do resgate financeiro. Nem assim, sabendo o que estava a fazer, Centeno deixou de propagandear o oposto.

Terceiro embuste: o do rigor na prestação de contas. Haverá pingo de honestidade, transparência e respeito pela democracia representativa quando, ano após ano, se apresenta um Orçamento do Estado e, por via de cativações e vetos de gaveta, se executa algo completamente diferente, como se pode constatar ao ler a Conta Geral do Estado dos anos em apreço? Muita sorte tem Centeno (e os demais ministros das Finanças) por contar com um Parlamento que queima dois dias a debater promessas e previsões e dedica meia hora a escalpelizar quanto se retirou aos contribuintes e quanto (e onde) se gastou esse dinheiro.

Quarta trapaça: a da independência. Como é que um homem que simulou um desaguisado com o primeiro-ministro para saltar diretamente do Governo para o Banco de Portugal (sendo nomeado por um secretário de Estado seu), que aceitou que esse chefe de Governo já demissionário indicasse o seu nome ao Presidente da República para lhe suceder em S. Bento e, depois, prosseguiu no regulador como se nada tivesse acontecido e que ainda alimentou, através dos jornais, uma quimera presidencial pode ser tido como idóneo por alguém que não esteja consumido por incorrigível sectarismo?

Só por clubite será possível comparar as condições políticas, institucionais e morais do governador cessante com as de Álvaro Santos Pereira. Só por temor próprio de líderes fracos

José Luís Carneiro terá garantido que o receberia “de braços abertos” no PS. Só por orfandade poderá haver socialistas desesperados por acolher alguém com o perfil descrito e ver em Centeno “material” para secretário-geral. De tão ridícula, a centenofilia pode matar. Devia ser estudada.

Consultor de comunicação

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