Carta de Estrasburgo
A escassez dos transportes entre Bruxelas e Estrasburgo é um bom sinal da renitência de muitos em manterem o estatuto de capital europeia (com Bruxelas e o Luxemburgo) desta amável cidade, estatuto que resiste apenas pela insistência da França em manter aqui uma segunda sede do Parlamento Europeu.
E, no entanto, foi nesta cidade, alternadamente francesa e alemã durante a sua História, que nasceu a primeira organização que procurava, depois da guerra de 1939-1945, institucionalizar um esboço de unidade europeia: o Conselho da Europa que, embora ultrapassado nos seus objetivos iniciais pela Comunidade Económica, depois União, Europeia, se manteve como guardião dos princípios do Estado de Direito e da Democracia, estipulados na Convenção Europeia dos Direitos Humanos e tutelados pela jurisdição do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, a que têm acesso todos os cidadãos dos Estados parte daquela Convenção.
Digo isto com a parcialidade de quem aqui viveu e foi feliz, mas a beleza desta cidade impõe-se aos nossos sentidos e o acolhimento que tive da parte dos meus colegas diplomatas e da associação cultural da comunidade portuguesa veio dar-me a certeza de um afeto antigo. E lá nos encontrámos de novo para falar de poesia e liberdade, sob a égide das comemorações do cinquentenário do 25 de Abril.
A leitura dos jornais franceses confirma o receio, que já encontrei na imprensa belga, das restrições financeiras que se perfilam no horizonte, com o regresso iminente das mais duras regras orçamentais da União Europeia, vulgo austeridade. O Estado Social, essa criação europeia do pós-guerra, nascida do movimento e das lutas das classes trabalhadoras, encontra-se em risco.
Mas as guerras cruéis e sem saída à vista que rodeiam hoje a União Europeia, do oriente da Europa ao que chamamos Próximo Oriente (mais correto em termos geográficos do que Médio Oriente) fazem-nos olhar com alguma angústia a paz desta cidade. Os mesmos jornais franceses dão conta de tensões interétnicas e inter-religiosas que se intensificam à volta da imigração e da rejeição crescente da presença de outras religiões, outras culturas e outros modos de vida nas sociedades europeias.
Temos tido em Portugal uma vivência relativamente mais tranquila desta presença dos outros no nosso espaço, mas as forças que o nosso Presidente qualificou de “direita radical” e que considerou, com otimismo, terem sido derrotadas pela “direita moderada”, estão impacientes por criar em Portugal as mesmas guerras étnicas e culturais, que entre nós estão em fase de latência (ainda ninguém, com exceção de uma minoria neonazi, perdeu a vergonha de ser racista), mas que assombram atualmente a Europa.
A rejeição dos outros, sejam culturas e religiões, sejam orientações sexuais e modos de vida privada não-conformes ao catecismo conservador, é a linha orientadora daqueles que pretendem, ao fomentar as guerras culturais e raciais, instaurar o pânico social que conduz a políticas autoritárias e intolerantes. Uma Europa branca na pele e conservadora nos costumes é o ideal assumido pela extrema-direita intolerante e racista.
A Europa habituou-se a conviver com as demais culturas do mundo, sobretudo desde o século XIX, de modo arrogante e superior, considerando-se a si própria dona do mundo e único farol do progresso e da civilização. Ver-se hoje, por um lado desafiada pelo resto do mundo a esquecer essa superioridade, que não existe mais, por outro levada a encontrar nas suas ruas outras raças, religiões e modos de vida, com quem não é capaz de conviver em pé de igualdade, conduz a formas de violência que atraem as reações autoritárias e ultraconservadoras, que devastam a Europa e o ideal europeu
Essa resistência aos estranhos cria o ambiente propício a todas as “direitas radicais”. Se acrescentarmos uma exploração pelos media de toda a violência social, nas escolas ou nos recintos noturnos, em termos raciais, poderemos criar um clima de intolerância e intransigência, que potencie o antagonismo entre comunidades, até à violência e ao terror.
Mas hoje vejo da janela de quem generosamente me albergou, em Estrasburgo, as cegonhas ativas nos seus ninhos e a esperança de súbito vem, improvavelmente, prevalecer sobre o medo. Pois tudo na História é tão imprevisível como o voo de uma cegonha.