Em Turcifal, terra de aristocracia senhorial e lavoura, nasceu Carlos Bernardes. Ele costumava afirmá-lo com orgulho, embora não fosse completamente verdade. Como parte dos portugueses nascidos perto de Lisboa, nascera na Maternidade Alfredo da Costa e vivera os primeiros oito anos em Caneças, onde aprendeu a ler e a escrever. Depois, sim. Chegou ao Turcifal e nunca mais no seu imaginário coube a mera hipótese de ter uma outra origem. Bernardes era um homem de honra. Um enorme reformista com o sonho de fazer crescer Torres Vedras, de a transformar num centro de oportunidades para as empresas e num lugar de conforto e futuro para as famílias. Um homem que parecia correr com medo que o tempo lhe fugisse, projeto atrás de projeto, uma avalanche de ideias, de novos objetivos, de novos parceiros e oportunidades. Quando a 24 de dezembro de 2009 o vento soprou mais forte em Torres Vedras e provocou uma forte destruição, avultou a figura do vereador da proteção civil Carlos Bernardes que durante vários dias não terá ido à cama. Todos juntos conseguimos reerguer e modernizar o setor das hortícolas de estufa, desmobilizando fundos de Bruxelas, tendo o então ministro da agricultura, António Serrano, um relevante papel.Quando Carlos Miguel deixou de ser presidente da câmara para ocupar um lugar no governo de António Costa, ninguém em Torres Vedras questionou ou teve dúvidas metódicas sobre quem assumiria o lugar. Carlos Bernardes era a opção lógica, a escolha que estava escrita nas Linhas de Torres. Assumiu a liderança da câmara em 2015 e tive oportunidade de o conhecer com mais profundidade. Nesta altura, tivemos algumas conversas e reuniões produtivas que ajudaram ao nascimento de vários projetos na cidade – na altura, como administrador da Caixa Agrícola recordo conversas com António José dos Santos, presidente da Caixa, em que nos perguntávamos o que o fazia correr sempre tão rápido. Para aqueles que percebem que o tempo é um talento – reforçamos a imagem –, de alguém muito empreendedor.Neste primeiro de agosto, dia de início de férias para tantos portugueses, e tão perto de novas eleições autárquicas, quero recordar um homem generoso que decidiu pôr termo à vida numa manhã de Primavera, fez há pouco tempo quatro anos. Fui das primeiras pessoas confrontado com a notícia dado que a Sara, sua nora, pelas 15h00 da tarde de segunda-feira com os olhos húmidos e um justificado nervosismo interpelou-me: “telefonaram-me a dizer que o Carlos se matou, será isto possível?” perguntei-lhe como ele tinha passado o fim de semana, tendo ela me referido “Muito calado e com sinais de profunda tristeza”. Então percebi que a má noticia podia ser verdade, e respondi-lhe: “Tenha calma”. Sou, como não poderia deixar de ser rigorosamente equidistante quanto ao destino das próximas eleições, qualquer que seja o resultado a nossa instituição assegurará apoio total à cidade e ao futuro executivo – e sei que é recíproco entre as listas que irão a jogo. Mas nesta época em que a memória é trôpega, sobretudo por isso, torna-se importante fazermos o esforço de não esquecer com tanta facilidade pessoas e a própria história do país e dos lugares. Quero dar um abraço à família do Carlos Bernardes. Parece que foi ontem que recebi a trágica notícia da morte de um homem bom, a desistência quando estava em funções de causas e projetos, e da vida que corria à sua frente.Nessa manhã antes de pôr termo à vida e ainda com respeito pelos outros, telefonou para a câmara e desmarcou a reunião que já não aconteceu. Não sabemos verdadeiramente a razão, talvez uma depressão, talvez a tristeza por uma acusação de plágio, logo a ele que tanto se esforçara para continuar a estudar, para fazer o doutoramento e poder dizer no final que completara um percurso que poucos imaginariam poder ser feito naquele lugar do Turcifal. E mesmo que tenha sido verdade o plágio, mesmo nessa penosa circunstância, Carlos Bernardes decidiu, como os homens com códigos de honra antigos, desistir de viver. Foi errado, mas foi a sua decisão.Saudades, caro Carlos. Foi um gosto tê-lo conhecido. Faz-nos falta em Torres Vedras. E quero que saibas, que por razões que não descortino, também ainda não consegui apagar o número do teu telemóvel. Em vida só o Alzeimer tem capacidade para nos apagar as memória. Presidente da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Torres Vedrasmanuel.guerreiro@ccamtv.pt