Camilo na China

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Estamos no fim de 2025 e ao longo deste ano fui contactada várias vezes para falar sobre Camilo Castelo Branco, “um dos grandes génios da Literatura Portuguesa”, porque é o ano do bicentenário do seu nascimento e porque traduzi para chinês A Queda dum Anjo e Amor de Perdição, respetivamente publicados na China em 1995 e 2001, com edições de caracteres tradicionais e de caracteres modernos.

O meu primeiro contacto com Camilo foi casual mas lógico. Quando comecei em 1973, juntamente com o meu futuro marido, a aprender português, primeiro em Xangai e depois em Pequim, com professores brasileiros, ouvimos falar sobre Jorge Amado e outros escritores brasileiros, desconhecendo a Literatura Portuguesa. A partir de 1977, trabalhámos como docentes universitários de português em Xangai, continuando a ter uma colega brasileira como leitora. Entretanto, chegou-nos da Gulbenkian e do ICALP a Biblioteca Básica de Literatura Portuguesa e tivemos assim a chance de conhecer Amor de Perdição e outras obras. Finalmente, após a chegada da leitora portuguesa Ana Camarina em 1981, tivemos uma formação detalhada em Literatura Portuguesa e como frutos do estudo, o meu marido apresentou um trabalho sobre Eça e eu sobre Camilo.

Talvez por ser uma mulher com coração “muito mole”, na expressão do meu marido, fiquei logo sensibilizada pela vida atribulada e lendária de Camilo, “destinado a ser um homem infeliz, para não contrariar o destino da família”; admirada pelo facto de ter escrito mais de quatro páginas por dia, durante 40 anos, sem nenhum dia de folga; e fascinada pela sua maneira de escrever, ora de sátira e humor, ora de ternura e paixão. Adorava ler romances cor-de-rosa, mas fiquei logo apaixonada por Amor de Perdição, uma exceção do meu gosto habitual. Levei mais de um ano a traduzir, com lágrimas a correr, essa obra escrita em apenas 15 dias na prisão. Em contraste, ao traduzir A Queda dum Anjo, não consegui conter sorrisos, risos e até gargalhadas.

Em 1988, fiz a comunicação Duas Tragédias Amorosas nas V Jornadas Camilianas onde se falava sobre o Centenário da morte do escritor em 1990. Decidi oferecer-lhe uma prenda e achei que a melhor prenda seria divulgar entre os chineses o nome desse grande homem e, para divulgá-lo, não haveria outra forma melhor senão traduzi-lo para chinês.

Consultei logo ali a opinião dos estudiosos e tive várias propostas. Escolhi A Queda dum Anjo, pois gostava do seu sabor satírico impecável que o leitor experimentava durante a leitura e continuava a recordar depois dela, e do seu tema antigo, mas também fresco e universal. Um amigo alertou-me para a dificuldade dessa tradução, mas estava preparada para enfrentar o desafio. Após a tradução inicial em oito meses, foram vários meses para resolver dúvidas na interpretação da obra original com amigos portugueses, Leonor Seabra, Luís Sá Cunha e P. Rios em Macau e Bigotte Chorão em Lisboa, e problemas técnicos de passagem de português para chinês consultando amigos chineses, Huang Jinyan e Xu Xin, primeiros leitores da minha versão. Exatamente dois anos depois, nas VII Jornadas Camilianas em 1990, tive o livro traduzido e fiz uma comunicação sobre a tradução. A sua publicação proposta por Jorge Morbey, presidente do ICM, surgiu no mesmo ano e fiquei muito feliz ao ouvir alguns chineses dizer que a leitura da obra lhes fez soltar risos espontâneos.

Ainda me lembro perfeitamente das visitas que fizemos, durante as jornadas camilianas, à aldeia e à quinta onde Camilo viveu, o que me fez sentir mais próxima dele. Perante a casa de pedra, pequena e rústica, compreendi a sua ânsia de sair de lá para um mundo maior. E olhando para a sua bengala na casa da quinta, senti o seu desespero perante a ameaça da cegueira, sobretudo quando o meu marido estava a encarar o mesmo problema.

A tradução de Amor de Perdição foi sugerida por Ana Paula Laborinho, presidente do IPOR , e Yao Jingming, poeta bilingue, responsáveis pela Biblioteca Básica de Autores Portugueses, talvez por eu ter publicado Estudo Comparado sobre Duas Tragédias Amorosas - Sonho do Pavilhão Vermelho e Amor de Perdição. A obra tinha no mercado duas versões chinesas, Amor Destruído (1981) e Amor Perdido (1993). O tradutor principal de Amor Destruído, Gu Fengxiang, professor de português em Pequim e amigo nosso, ofereceu-nos um exemplar explicando que, para atrair o público, a editora mandou alterar o título e cortar algumas partes. Apesar disso, o seu mérito não pode ser esquecido, pois trata-se do primeiro romance português traduzido de português para chinês na China Continental tendo um enorme sucesso. Um aluno nosso, ao ler a obra em português nas aulas, ficou tão emocionado querendo que a mãe lesse também, mas a 1ª edição de Amor Destruído estava esgotada. Pediu então emprestado o nosso exemplar para a mãe, uma operária, que comentou: “É uma história de amor comovente, como se fosse o nosso Sonho do Pavilhão Vermelho.” E Amor Perdido, de Wang Quanli, não li na altura. De qualquer maneira, na minha versão, traduzi integralmente o livro, até dedicatórias e prefácios de reedições. Um rapaz chinês, do ensino secundário português, pediu-me a versão chinesa para melhor perceber a história em português, cumprindo assim uma tarefa da disciplina de Português. Há dois meses, uma diretora de teatro, chinesa, ao folhear Amor de Perdição em chinês, perguntou-me se era possível levar a história ao palco chinês.

A exposição O Encontro das Línguas - Escritores Portugueses Traduzidos em Chinês (versão 2020), do Instituto Camões, mencionou mais de 70 nomes. A partir daí, mais autores foram apresentados na China. Em comparação com Eça, Fernando Pessoa e Saramago, muito traduzidos na China, Camilo só tem dois livros em chinês. Tendo em conta o português ensinado hoje numas 50 universidades chinesas, apelo para a formação de tradutores literários entre chinês e português esperando que Camilo, assim como outros autores, sejam mais traduzidos e divulgados junto do público chinês.

Professora de Língua e Cultura Chinesas

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