Cada homem é uma raça

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Deve-se a Mia Couto a frase que encima esta crónica. Quando há a tentação de fazer das diferenças muros de separação, é tempo de ouvirmos a estória do Embondeiro que sonhava pássaros. Filipa Leal recordou-nos isto mesmo na sua maravilhosa “Pequena Biblioteca” na terça-feira da RTP-2. No limiar de um Novo Ano de 2026 é bom lembrarmos que “só um mundo novo nós queremos: o que tenha tudo de novo e nada de mundo”. Não que recusemos o mundo em si, mas para que não esqueçamos a sua imperfeição, e a necessidade de sermos melhores. E continuamos a ouvir o escritor moçambicano a confessar-nos que sabe como fala uma árvore, “parente da árvore, do bicho e do rio”. E nesta necessidade de ouvir está a força da personagem de Tiago, a “criança sonhadeira”, sem outra habilidade senão perseguir fantasias. E essas fantasias não são uma fuga à vida, mas o entendimento de pessoas como nós e daquele homem que não tinha sequer um nome, mas a quem chamavam apenas “passarinheiro” e que vivia num tronco ressequido e sábio da árvore que representava o mundo da vida.

O narrador, ao ouvir e ao interpretar o que a natureza nos oferece, enquanto realidade inesgotável, ensina-nos, não na teoria, mas na prática, na experiência e no exemplo, apenas: “posso ser triste, mas não infeliz” ou “o pessimismo é algo que devemos combater”. No entanto, a cada passo assalta-nos o estranho medo do outro e há quem nos tente convencer de que o outro é um inimigo, e não a metade de nós mesmos, onde quer que ele se situe. E ouvimos o gesto agressivo: “quem autoriza aqueles pés descalços a sujarem o barco?”. No entanto, como poderemos cultivar a indiferença? E de novo Mia põe-nos alerta: “há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas”. Não vale a pena desenvolver muitas teorias. Um simples conto permite-nos explicar quase tudo. “Cada homem é uma raça”, diz-nos afinal que somos todos iguais e todos diferentes. A palavra raça outrora dominadora, torna-se símbolo irrepetível de singular autonomia e de encontro, não de encerramento. Em lugar da tentação dos grupos fechados e dos privilégios, importa considerar que todos e cada um dos seres humanos são a base do respeito mútuo e da justiça. Lendo Luandino Vieira, Guimarães Rosa e Fernando Pessoa, Mia Couto favorece a atenção e o cuidado para com todos, na legitimidade e na universalidade do ser humano. Unimo-nos na ficção à vida inesgotável e à liberdade que permite encontrar na realidade e no sonho a essência da humanidade. E o Papa Francisco no diálogo com Javier Cercas, lembra no livro do ano, O Louco de Deus no Fim do Mundo (Porto Editora, 2025), em que o escritor acompanhou o Sumo Pontífice até à longínqua Mongólia, que são bem-aventurados os puros de coração porque verão a Deus, pondo a tónica na misericórdia e na dignidade universal de todos os seres humanos, independentemente de escolhas ou de privilégios.

Artífice incansável de Terra Sonâmbula, Mia Couto acompanha-nos neste juízo do ano, e permite-nos compreender, como disse um dia, que a verdadeira arma de construção maciça de que dispomos é o ofício de pensar, que nos permite ir além do queixandar e da incapacidade de responder a quem de nós precisa… E assim poderemos falar e ouvir, uns com os outros, entendendo-nos.

Presidente do Conselho das Artes do Centro Nacional de Cultura

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