AstraZeneca. A ciência nas mãos dos políticos é sempre fatal
Platão disse-o mais ou menos assim há mais de dois mil anos: a única forma de o estado ser bem gerido era o rei ser filósofo ou o filósofo ser rei.
Facto é que ao dizê-lo ainda estava a tentar superar o trauma da injustiça que Atenas fizera ao seu mentor (e amante) Sócrates, ao condená-lo à morte por "corromper a juventude". E facto também é que, ao propor tal sistema político, estava no fundo a defender uma "ditadura esclarecida", contrariando a "democracia" ateniense de Péricles.
Mas o maior erro dos nossos dias é olhar para a História com os olhos de hoje. Por muito sofisticada que a Atenas da Antiguidade fosse -- e era --, não deixava de ser uma civilização cuja mão-de-obra se baseava na escravatura, em que as mulheres não tinham direito de voto, etc.
Hoje, quando estudamos os grandes filósofos socráticos, é fácil pensarmos em toda a Atenas como uma grande Ágora onde as maiores mentes da época discutiam o saber universal. Mas nada podia estar mais longe da verdade. As pessoas comuns, os cidadãos, eram analfabetos, ou semianalfabetos, muito supersticiosos, com deuses e semideuses para tudo e mais alguma coisa, fazendo sacrifícios animais e oferendas para resolver dos mais ínfimo problema à maior doença. E quem aparecia com ideias diferentes (como Sócrates) corria o risco de ser, simplesmente, condenado à morte.
20 séculos depois, aprendemos (pelo menos no Ocidente) a não pôr em cargos de poder quem prefere condenar à morte os elementos mais perturbadores da sociedade -- foram precisas duas guerras mundiais para isso, no entanto. Mas continuamos a não conseguir saber tirar do velho Platão a parte do seu pensamento que vale a pena.
Apesar de o "rei" não precisar necessariamente de ser "filósofo" -- a História já demonstrou várias vezes que normalmente estes (cientistas) não são os mais focados nos assuntos do dia a dia para estarem em cargos do poder --, pelo menos precisa ter noções de "filosofia" (ciência) suficiente para tomar decisões.
Noções sobre o método científico, sobre como se chega ao conhecimento do momento e como este pode ser permanentemente corrigido.
E, essencialmente, perceber a pedra basilar da ciência: a pura honestidade dos FACTOS. Só estes podem fazer-nos mudar de modelo. E quando estes demonstram ser não ser aplicáveis, tal significa inevitavelmente que estávamos errados.
A ciência não é, assim, "o que diz um cientista", como fez questão de lembrar o físico Carlos Fiolhais a António Costa quando este último resolveu, em fevereiro, pedir "consenso científico" para justificar as suas decisões políticas.
Os políticos que continuamos a escolher para nos dirigir, no entanto, não querem saber de nada disto.
O caso da vacina da AstraZeneca é o mais recente exemplo.
Sempre foi por demais evidente que os alegados riscos da toma do fármaco superam em muito quaisquer perigos que aquilo possa provocar.
Não houvesse mais nada, o simples facto estatístico (com números aproximados e por cima): 40 casos suspeitos de coágulos em 20 MILHÕES de pessoas vacinadas.
Vou escrever isto com zeros para tentar transmitir a diferença:
40 para 20 000 000
Dirá o formado em qualquer disciplina de humanísticas (como eu -- sou formado em Direito): "Pois, mas para a pessoa que tem o azar de apanhar o coágulo ela quer lá saber da estatística!"
Sim, é um facto, mas as decisões políticas não podem ser tomadas com base "nessa pessoa". Por essa ordem de ideias, todos os automóveis seriam proibidos -- tendo em conta o número de mortos anuais nas estradas. E se é daqueles que até acha isso uma boa ideia, lembre-se de que o número de acidentes com bicicletas na Europa não tem parado de subir... E podemos continuar...
Viver implica um risco. Decidir, em políticas públicas (e não só), implica optar pelo risco menor. Mesmo que houvesse um nexo de causalidade possível entre a vacina e os coágulos (que não há), seriam precisos mais exames para perceber o que se passa -- isto é ciência -- antes de disparar a suspensão. Com os números acima, nem de um erro estatístico estamos a falar.
Além disso, convinha as autoridades públicas não se terem esquecido, já existe entre uma fatia grande da população uma desconfiança relativamente a todas estas vacinas. Muita gente pensa (idiotamente, mas o que é que se há de fazer?) que não são seguras porque foram feitas "demasiado depressa".
Bolas! Ainda há gente que acha que a covid não existe!
E agora vêm dizer que "ah, temos aqui uma vacina que se calhar faz mal, ah, espera, afinal não faz...."
No final, os políticos e os "técnicos" -- burocratas -- à frente dos institutos vão tentar culpar os cientistas por isto tudo. Os mesmos que estão desde os primeiros minutos a dizer que não há qualquer razão para haver pânico.
Mas se há alguma culpa a apontar, aqui, no Ocidente, é a cada um de nós. É que fomos nós que votámos neles.