As mudanças em curso na Ordem Internacional: os desafios, riscos e perigos para as democracias

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Vivemos em tempos de elevada polarização política, seja no interior dos países, seja no sistema internacional como um todo. Não é uma realidade nova pois, muitos de nós, experienciámos a Guerra Fria, com a sua polarização ideológica, que instituiu um regime de pactos militares nas relações internacionais.

Embora a Guerra Fria fosse uma guerra de natureza eminentemente política, tinha a ameaça nuclear e uma possibilidade de guerra convencional na Europa, como uma Espada de Dâmocles permanente sobre o globo. Mas a dissuasão foi funcionando e as guerras que foram acontecendo nas periferias nunca envolveram diretamente os dois principais contendores, os Estados Unidos e a União Soviética.

Outra característica era que os países respeitavam, minimamente, as regras da Ordem Internacional (OI) pós-2.ª Grande Guerra, fosse o sistema das Nações Unidas, fossem as regras básicas do Direito Internacional, que tinham resultado dos acordos no fim da guerra. Tanto os Estados Unidos (EUA) como a União Soviética (URSS) tinham estado envolvidos no estabelecimento dessas regras. Alguns dos aliados dos Estados Unidos eram, como sabemos, regimes autoritários, de matriz anticomunista, que participavam no esforço de contenção da União Soviética, cujo regime comunista era, por natureza, ideológico, internacionalista e expansionista.

Com o fim da Guerra Fria, entrámos numa OI liderada pelos Estados Unidos, mas funcionando com as mesmas regras e normas do Direito internacional, vindas do anterior sistema. Mas, o apregoado fim da história não funcionou tão bem como esperávamos, em que a ordem liberal e democrática ir-se-ia estender a todas as nações da Terra. Aquilo que designamos de OI é, numa visão simples, um sistema de repartição de poder e um conjunto de regras de funcionamento, aquilo que será semelhante a uma “Constituição” num Estado que tem normas e instituições que fazem funcionar as relações internacionais, preferencialmente para melhor.

Mas vejamos o que tem vindo a acontecer neste mundo, em especial nos últimos 10 a 15 anos. Conseguimos identificar duas tendências macro, com interesse para a OI. Em primeiro lugar, um reequilíbrio de poder a nível global, com países e organizações a desafiarem os EUA e os seus aliados da ordem liberal democrática, onde é mais visível o caso da China e dos BRICS.

Em segundo lugar, um reforço de assertividade das autocracias, que já não são mais os velhos regimes autoritários e ditatoriais. Aconselho vivamente a ler os trabalhos da historiadora americana Anne Applebaum que, nos últimos anos, tem vindo a caracterizar estas autocracias, as evoluções que têm sofrido e o papel que têm vindo a desempenhar, e os seus objetivos, na alteração da Ordem Internacional. O seu último livro, Autocracia, Inc., caracteriza de forma magistral o papel que as autocracias estão a ter na tentativa de alteração da Ordem Internacional, num caminho que irá, não só, pôr em risco a ordem liberal e democrática internacional, mas também apostam na destruição das democracias como regime político.

Ao nível das autocracias, constatamos a aliança de alguns países, casos da Rússia (que lidera este grupo), Irão, Coreia do Norte, Venezuela, entre outros, cujo objetivo é, de facto, alterar a “Constituição” da atual OI, destruindo as regras e normas no âmbito do Direito Internacional, e criando organizações e associações num mundo sem regras dignas desse nome, onde o uso da força será a principal regra. Os motivos para a Rússia invadir a Ucrânia inserem-se neste desiderato, onde foi posto em causa o preceituado pelas regras das Nações Unidas sobre o uso da força e a violação de fronteiras de soberania.

A isto alia-se uma internacionalização autocrática, onde a Rússia de Putin financia partidos radicais europeus (e noutros continentes) no sentido de alterar os regimes democráticos para regimes autoritários, mais apoiantes dos objetivos de alterar a OI. Conhecemos imensos casos desta natureza, até mesmo Governos dentro da UE, o caso da Hungria e de algum modo a Eslováquia, que corroboram práticas de corrosão da ordem liberal e democrática. O mesmo acontece com o Irão, e a rede que constituiu de proxies no Médio Oriente, para subverter a estabilidade regional.

A China, que tem feito alianças pontuais com estes regimes autocráticos, e que é, em si mesmo, um regime ditatorial, parece-nos mais interessada numa repartição de poder, do que em alterar a OI. A China ganhou relevância económica com a globalização e com a sua inserção na Organização Mundial do Comércio. Julgamos que com uma alteração radical da atual OI, poderá este país ter mais a perder do que ganhar, pois precisa das relações comerciais com o Ocidente para ganhar e consolidar poder. No entanto, o risco de a China entrar, em pleno, na coligação autocrática é grande e, neste caso, com impactos negativos para o Comércio e Economia Internacionais e, também, para a estabilidade securitária global.

Constatamos que o principal desafio, que se coloca às democracias na sociedade global, é a preservação do nosso modo de vida, seja em termos internos, seja na manutenção duma OI fundada no direito e em regras, mantendo, mas necessariamente melhorando, o sistema das NU e das organizações regionais e sub-regionais. A repartição do poder numa OI mais policêntrica não é obrigatoriamente negativa, estando na mão das democracias de todas as latitudes um desenvolvimento económico sustentado e dinâmico, que lhes permita manter relevância no concerto internacional.

É uma competição em que as democracias têm de se empenhar desde já, se queremos manter, por um lado, este sistema democrático, talvez mais robusto e saudável e, por outro, manter um Direito Internacional fundado em regras e normas, ética e moralmente aceitáveis.


Tenente-general

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