As imagens que salvam

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Ver o mundo a desfazer-se na loucura, na guerra e na morte e não se deixar cair na impotência e na depressão é um desafio a todos nós, que vejo reiterado na estimulante e lúcida entrevista do filósofo da arte Georges Didi Huberman ao PÚBLICO de domingo.

Eu costumo lembrar-me, nesta situação, do personagem camusiano do Dr Rieux, médico da peste no romance com o mesmo nome. Ele não traz consigo a esperança nem o desespero: ele traz consigo o dever. Ele está onde deve estar.

Por isso, para além de mantermos sem quebras a atitude crítica e a capacidade dos movimentos coletivos, é essencial que permaneçamos fiéis ao dever das nossas atividades. Uma exposição, um encontro de escritores, um concerto, não são fugas nem formas de escapismo à lucidez do pensamento crítico: é na realização de todas as nossas atividades criadoras que ganhamos a energia para resistir e para insistir na verdadeira escala de valores.

A um mundo controlado por algoritmos e atacado na sua capacidade de pensar pelos mecanismos que as redes sociais nos trouxeram, a resistência do pensamento próprio e da capacidade de compreender os outros são o fundamento da nossa diferença.

Didi Huberman recorda-nos uma máxima de um dos líderes da insurreição do ghetto de Varsóvia: “O mal é humano e não unicamente nazi.” Gaza veio recordar-nos que as vítimas podem tornar-se novos carrascos. E isso não torna nem menos inocentes as vítimas nem menos culpados os carrascos. Mais que a banalidade do mal, enfrentamos a universalidade do mal. A História humana é feita de barbárie e de violência, terreno onde, apesar de tudo, acontece crescerem também a beleza, o saber e a bondade.

Georges Didi Huberman explora a ideia do “levantamento” (soulèvement), no sentido de uma antropologia capaz de nos dar instrumentos para entender a dimensão corporal dos gestos e das imagens na resistência e na revolta. Mas, é claro, esta análise vem esbarrar em primeiro lugar na ambiguidade das próprias imagens.

Falávamos a semana passada, a propósito da exposição sobre a poesia de Nuno Júdice e as artes visuais, da relação ambígua que as palavras mantêm com as imagens. É que toda a capacidade mobilizadora das imagens se faz contra, ou apesar, da sua ambiguidade; mas o mesmo sucede com as palavras, cuja ambiguidade está sempre connosco. “Seja como for” conclui o Didi Huberman “há diferentes regimes de ambiguidade que nos desafiam e que podemos, mediante algumas tentativas, tentar desconstruir”.

Como a velha toupeira, que o velho Marx gostava de citar, contra a nossa transformação em peças do jogo digital teremos sempre que contar, tal como a toupeira por debaixo da terra, com todos os meios de criação e de invenção que nos ajudem a romper os vínculos de sujeição e de dominação que nos pretendem desumanizar e subjugar.

Cada poema que nos fala, cada obra de arte que nos interpela, traz consigo essa enorme promessa de liberdade.

Diplomata e escritor

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