Eu gosto da mudança da hora. As horas devem mudar com as estações e a luz deve ser matinal e o anoitecer sombrio, agora que nos despedimos do verão (que na nossa terra, convenhamos, tem tardado a partir, como aqueles convidados que se demoram em mais conversas, quando já estão na soleira da porta, a despedir-se), porque o “claro Sol, amigo dos heróis” (Antero) faz-nos mais falta para começar o dia em modo heróico e conquistador, ainda que o nosso destino seja o emprego mais modesto. Já a melancolia da partida da luz, que nos evoca o dilacerante do not go gentle into that good night (Dylan Thomas), vivemo-la mais cedo, a meio da tarde, e sentimos o conforto daquela boa noite que espera por nós, não a macabra noite de Dylan Thomas, apenas aquela noite que nos devolve à casa e à intimidade, mesmo que a casa seja exígua e a intimidade triste. De qualquer modo, é a noite que nos devolve a nós próprios, depois de termos mostrado ao claro Sol que não pertencemos afinal ao mundo dos heróis.Nos países mais ao Norte, onde os dias são mais curtos e as noites dominam os dias e os espíritos, encontramos, dizem, o maior número de leitores. Não sei se ainda será assim. Pessoalmente gosto mais de ler e de escrever pelas manhãs (para fingir que pertenço aos amigos do Sol?) e a noite é quando me encontro comigo e com os monólogos interiores que deveria logo transformar em escrita, mas que ficam à espera do “claro Sol “da manhã. E que fazer se a manhã nos oferece, pelo contrário, a chuva e o mau tempo?Há quem, insatisfeito com o Salazar que tivemos, diz que precisaríamos, pelo menos, de três Salazares. É um pensamento próprio do escurecer, pois o claro Sol de Antero não estima os ditadores, que nunca são heróis, são personagens que destroem as nações e as mentes e contribuem para noites tão escuras que mal se pode ler e escrever entre essas trevas.Mas o número três tem um significado forte, é a Santíssima Trindade, é a “conta que Deus fez”, é a sociedade tripartida indo-europeia (reis e sacerdotes para mandar, guerreiros para lutar, produtores para obedecer), que Dumézil descreve. Seria cada um dos Salazares destinado a cada uma destas ordens, orientando os reis, inspirando os sacerdotes, ensinando a guerra aos guerreiros e fazendo trabalhar mais os produtores? O pesadelo é forte demais para o podermos aguentar, mesmo nestas longas noites que o inverno nos virá oferecer.Mas andam as estações doidas e desarvoradas com esta mudança climática, que nos parece evidente e cientificamente provada, apesar de os nossos dirigentes mundiais, esses que fogem das vacinas, se recusem a acreditar nas mudanças e nos cientistas. Para quê acreditarmos em qualquer coisa que não nos dê rendimento imediato?Eu gosto das mudanças de estações. Quando vivi em países tropicais, mesmo que “abençoados por Deus” e “bonitos por natureza”, senti a falta das primaveras e dos outonos e não quero que a evolução climática nos venha roubar essas transições no tempo. E gosto, confesso, gosto da mudança da hora. Para que serviriam, senão, os equinócios e os solstícios? Diplomata e escritor