O risco de uma nova guerra civil nos EUA é hoje discutido abertamente nos meios académicos e na comunicação social generalista. Gregory Treverton, que presidiu até 2017 ao importante National Intelligence Council, escreveu mesmo que ela "vem a caminho" (The Article, 14.12.2021). Na minha crónica do DN sobre o assalto de Trump ao Capitólio (DN, 12.01.2021), estabeleci uma comparação com o acontecimento que simbolizou o início da guerra civil: "O que existe de comum entre [o assalto sulista ao] Forte Sunter-1861 e o Capitólio-2021 é o facto de ambos marcarem um ponto de não retorno na história dos EUA." Sobre a configuração do que poderia ser essa nova guerra civil, considerei que o tempo dos grandes exércitos está passado. O mais provável será "uma violência difusa, espasmódica e de atrito. Uma mistura de Mad Max com o Regresso dos Zombies"..Encontrei apreciações muito semelhantes numa recente entrevista dada pela professora Barbara F. Walker (Universidade da Califórnia) à CNN. Além de docente, ela é também especialista em guerras civis e conselheira da CIA. Ao longo dos anos tem-se debruçado sobre países como a Síria, o Líbano, a Irlanda do Norte, Angola, Ruanda, Sri Lanka, Filipinas, Nicarágua, entre outros. Em 11 de janeiro 2022, Barbara Walter irá apresentar o seu novo livro, intitulado Como Começam as Guerras Civis, e Como Acabar com Elas (How Civil Wars Start, and How to Stop Them, New York, Crown)..A autora aplica os ensinamentos e modelos analíticos desenvolvidos no estudo de todos os países acima referidos à atual situação dos EUA. O resultado é alarmante. Os EUA apresentam duas das características principais que preludiam potenciais guerras civis. A primeira é a persistente degradação da estrutura funcional da democracia, capturada por interesses setoriais e manobrada por políticos (sobretudo ao nível dos governos estaduais) que gerem a coisa pública de modo arbitrário e autoritário. O modelo político em que os EUA estão a tombar é designado como anocracia (uma mistura explosiva entre autoritarismo e remanescentes democráticos). A segunda característica perigosa é a transformação, pela demagogia política, de fatores étnicos e religiosos em falhas ontológicas insuperáveis, impedindo uma verdadeira "razão pública": o nome dado por John Rawls ao processo de superar diferenças abissais em favor da cooperação social focada numa agenda comum..O país que foi um farol de esperança para os perseguidos, que a todos acolhia no seu melting pot, revela-se agora agressivo e hostil, até para aqueles que há séculos nele habitam. O "patriotismo constitucional" dos EUA, bem patente no sempre emocional exame de cidadania para imigrantes, foi esmagado pelas lealdades raciais e comunitaristas, apoiadas no armamento generalizado dos civis. O Congresso Federal, que foi o lugar onde se celebrou a diferença, mas também a procura de consenso, transformou-se num dos lugares mais ideologicamente tóxicos do planeta. Não surpreende por isso, que há muito o Congresso tenha perdido credibilidade junto dos eleitores. Contudo, agora, com a transformação do Partido Republicano numa associação de fações promotoras de ódio e ressentimento, torna-se evidente que os representantes e senadores não se preocupam sequer em salvar as aparências. Ninguém sabe se será possível parar a contagem decrescente da desagregação dos EUA. O que é certo, todavia, é que se tal vier a ocorrer todos daremos por isso..Professor universitário