Água a 30 graus, tornados no Mediterrâneo e um iate cheio de milionários

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Água do mar a 30 graus? É o sonho de qualquer banhista friorenta como eu e está a acontecer no Mediterrâneo por estes dias, depois das ondas de calor que atingiram a região. A última foi interrompida no fim de semana por uma vaga de ar frio que provocou fortes tempestades por toda a Itália. Um dos tornados - tecnicamente chama-se “tromba d‘água” ao vórtice que se cria entre a base de uma nuvem e a superfície de mar, formando uma coluna de vapor de água e vento - atingiu em cheio o iate Bayesian. Das 22 pessoas a bordo, 15 foram resgatadas com vida e sete foram encontradas mortas, seis delas após vários dias de buscas dentro do veleiro afundado.

Por muito apelativa que a ideia de um mergulho numas águas quentinhas possa ser, perde todo o fascínio quando percebemos que essa temperatura - junto à ilha da Sicília, onde o Bayesian afundou, a superfície da água oscilou entre os 27,5 e os 30,5 graus na passada segunda-feira, dia do naufrágio, três graus acima da média nesta época do ano - é consequência direta das alterações climáticas. 

Ora a história do Bayesian só chegou às páginas dos jornais porque a bordo seguiam um milionário e um banqueiro de renome, ambos entre as vítimas cujos corpos foram resgatados na quarta-feira. Mike Lynch, de 59 anos, era conhecido como o Bill Gates britânico depois de ter fundado, e mais tarde vendido à Hewlett-Packard por 11 mil milhões de dólares, a empresa de tecnologia Antonomy. Filho de uma enfermeira e de um bombeiro, o britânico estava com a filha Hannah, de 18 anos, cujo corpo foi o último a ser recuperado, esta sexta-feira. A mulher, Angela Bacares, foi uma dos sobreviventes. Apesar do aparente negócio de sonho, a venda da Autonomy valeu a Lynch uma década de luta na justiça, depois de ter sido acusado de fraude nos EUA. O processo só terminou em junho último, com o milionário a ser ilibado. 

O que é que isto tem a ver com o Bayesian? Tudo. Ou não estivesse Lynch a celebrar a vitória judicial a bordo do veleiro e não fosse um dos outros mortos Chris Morvillo, advogado americano que fez parte da equipa de defesa do magnata. Morvillo, de 59 anos, seguia a bordo com a mulher, Neda, tendo estado envolvido na investigação criminal aos atentados de 11 de Setembro antes de se especializar em clientes de colarinho branco. 

Já Jonathan Bloomer, presidente do Conselho de Administração do Morgan Stanley International, fora diretor não executivo da Autonomy e testemunha de defesa no processo contra Lynch. O banqueiro, de 70 anos, e a mulher também seguiam no Bayesian, tendo desaparecido durante a tromba-d‘água e sido mais tarde encontrados sem vida. 

As notícias em torno do naufrágio ao largo do pequeno porto de Porticello ganharam ainda mais destaque devido a uma infeliz coincidência, daquelas capazes de alimentar loucas teorias da conspiração. Dois dias antes de o Bayesian ser engolido pelo Mediterrâneo, Stephen Chamberlain, acusado no mesmo processo que Lynch, era atropelado enquanto fazia jogging em Cambridgeshire. A sua morte foi confirmada segunda-feira. 

Coincidências e teorias da conspiração à parte, o naufrágio do Bayesian e a morte destes protagonistas serve de alerta para um perigo real: as alterações climáticas matam. Mais diretamente e mais depressa do que estaríamos à espera. 

Num mundo em que muitos, inclusive líderes mundiais como Donald Trump ou Jair Bolsonaro, ainda negam as alterações climática - considerando-as “uma criação dos chineses”, no caso do primeiro, ou um complô de “marxistas culturais”, no do segundo - importa destacar o alerta deixado no The Guardian por Roberto Danavaro, biólogo marinho da universidade de Ancona, sobre a “relação absolutamente direta” entre as temperatura anómalas da água do mar este verão e a tempestade. E o especialista faz outro aviso: “As ocorrências de tornados ou furacões no Mediterrâneo aumentaram nos últimos 10 ou 15 anos. E com base nas altas temperaturas é provável que tenhamos mais em setembro e outubro. O calor deste verão não traz nada de bom.” 

Quer se olhe para um estudo publicado ontem pela Lancet Public Health, que garante que até final do século as mortes devido a vagas de calor na Europa podem triplicar, com os números a subir descontroladamente em Itália, Grécia e Espanha, quer se olhe para os números da Organização Mundial de Saúde, segundo os quais, entre 2030 e 2050, as alterações climáticas deverão causar 250 mil mortes adicionais por ano, por subnutrição, malária, diarreia ou stress devido ao calor, o cenário é assustador. 

É preciso agir agora se queremos poupar vidas no futuro. Ou no presente, afinal os efeitos das alterações já provaram que não poupam ninguém - nem mesmo milionários num iate. 

Editora executiva do Diário de Notícias

(atualizado dia 23 de agosto às 12h40)

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