A viúva triste

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Depois do pecado original e apesar de tudo o que se costuma dizer sobre a tradição judaico-cristã, a culpa, mais do que solteira, tem sido uma viúva cada vez mais triste, que ninguém sente vontade de acompanhar, quanto mais de consolar e chamar sua. A culpa é sempre alheia, mais ou menos pretérita.

Em especial na vida política, a quem está no poder, há mais ou menos tempo, desgosta sempre muito ser associado à culpa. As situações são sempre inocentes e as oposições herdeiras dos culpados de tudo o que seja imaginável. Dependendo das perspectivas, pois as oposições que foram situação também são rápidas a desculpabilizar-se de qualquer mácula. Nada disto é novidade, verdade se diga. Chega mesmo a ser um topos que quase todos usam e até fica mal que assim seja, sendo considerado estranho que exista quem diga que o flato que deu foi mesmo seu.

Vem isto a propósito de mais uma generalizada sessão de desculpabilização acerca do estado lastimável dos serviços públicos, atropelados por um quarto de novo século em que por cá se adoptaram de forma alegre as teses da new public management que tinham feito furor da orgulhosa direita neoliberal à esquerda envergonhada da terceira via nas últimas décadas do século XX.

Apesar da sua permanente solidão, a culpa deveria muitos pretendentes, se a vida fosse justa; não seria necessário os lábios estarem em silêncio e os violinos sussurrarem, porque haverá inocentes na forma como se achou que a coisa pública deveria ser gerida à moda privada, visando a racionalidade económica, o lucro e o proveito em vez do ser o serviço dos cidadãos? Começando na Saúde e Educação, mas deixando igualmente a Justiça e a Segurança Pública nas ruas da suborçamentação?

Faltam médicos e professores, mas ninguém tem responsabilidades na desgovernança que foi atrás de uma pretensa modernidade, sacrificando o que são as funções tradicionais de um Estado que ainda se afirma Social (democrata, cristão, socialista, liberal), mas muito pouco praticante?

Por feitio defeituoso, custa-me mais o alijar de responsabilidades a quem agora se diz muito preocupad@ com o estado das coisas quando, tendo responsabilidades, nada fez em contrário, muito pelo contrário. Como aquela ex-governante, dos tempos da geringonça, agora alegadamente de uma mítica ala esquerda do PS, que no seu tempo argumentou com a boa governança para abrir concursos para colocação de professores dos quais excluía milhares de horários por serem incompletos. E o que dizer da substituição de “encargos permanentes” na Saúde por remendos temporários que, quase duas décadas depois, se revelam bem mais onerosos? Em tudo isto, PS e PSD foram coniventes por acção e as suas periferias complacentes por inacção, por muito que o neguem. É por isso que o pequeno coração da culpa bate e palpita, mas continua sem que alguém diga, sequer em surdina, que é sua.

Professor do Ensino Básico. Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico

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