A verdade na política ou o comentador-político

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É conhecida a expressão “4.º Poder”, associada ao poder dos media. Foi Marshall McLuhan quem, em 1964, aplicou aos estudos dos meios de comunicação áudio-scripto-visual a seguinte tese: o meio é a mensagem, assim defendendo a perspectiva segundo a qual a eficácia de uma mensagem depende mais da forma da transmissão que do conteúdo. O que no nosso país (mas não só) temos visto - a ascensão ao estatuto de político por parte de comentadores, jornalistas, figuras que, de um modo mais óbvio ou não, beneficiam do estrelato mediático-televisivo - tem que ver com o poder da ideologia. A ideologia é para Umberto Eco o poder invisível (ver A Estrutura Ausente) e esse poder, apesar de invisível, determina a própria interpretação que as pessoas têm do que, por meio dos media, é veiculado. No caso do comentário político a ideologia conhece, em Portugal, uma curiosa mudança nos últimos anos: da invisibilidade inicial, ou de certa neutralidade, ou imparcialidade, o comentário já não é, hoje, só análise e informação. Comentar transformou-se num modo outro de doutrinar, subvertendo a própria ideia de um jornalismo independente nas televisões, bem como noutros canais. Essa realidade que deriva da preponderância do meio sobre a mensagem está a corroer o verdadeiro debate político, e, por consequência, a democracia. O comentário deveria recair sobre a harmonia (ou a ausência dela) dos discursos. Melhor: fazer comentário político deveria ajudar quem vê e ouve o comentário a compreender se há ou não há, neste ou naquele político, um pensamento claro, uma palavra escorreita que o diz e uma acção honesta que o concretiza. Nada disso - salvo excepções - é feito por muitos dos comentadores políticos da nossa praça.


O recente caso do jornalista português, de 28 anos, Sebastião Bugalho, o qual, de comentador político se transformou em candidato, pela AD, ao Parlamento Europeu, não sendo novo, reabre um debate decisivo. Fazendo parte de uma lista de personalidades que, partindo do jornalismo, se lançaram em percursos políticos, Sebastião Bugalho fez do comentário - como Marcelo Rebelo de Sousa ou Paulo Portas - um trampolim para uma intervenção pública. Se em 2019 Bugalho tinha já integrado as listas do CDS-PP de Assunção Cristas (ano em que não foi eleito), o agora cabeça-de-lista da AD tem a certeza da sua eleição.

Na verdade, as contradições deste jovem comentador-político encerram em si mesmas um dado a pensar: chegámos a um ponto em que a própria contradição entre a palavra e a acção (Bugalho, há uns anos, creio, na SIC-Radical, declarou não ter ambições políticas - pelo menos não com os partidos actuais) parece suscitar o fascínio por parte de outros comentadores que vêem nestas súbitas transferências dum poder para outro poder a prova de uma democracia viva. Mas é precisamente esse tipo de transferência fácil dum lugar para um outro lugar que deveria motivar o comentário que desmontasse, analisasse e informasse o público com verdadeiro espírito livre. Mas não. As contradições, os dislates, o fundo oportunismo de quem passa dum lado para o outro são, afinal, sinónimo de sagacidade, de flexibilidade, de adaptação por parte de todo aquele que “tem mais faces que Proteio” (Camões), mudando sempre de ofício, tendo sempre várias máscaras. Num país onde abundam os “capitalistas das palavras” (Sophia), e onde até uma palavra como “irrevogável” mudou de sentido, o comentador-futuro-político sabe que o que dantes era incoerência ou mera desfaçatez é hoje fina capacidade analítica. Ele não ignora que o que dantes seria motivo para indignação é hoje motivo de admiração. Ele sabe que o oportunismo é, neste rectângulo, prova de genialidade.

A questão essencial é, na perspectiva que aqui defendo, a mesma que Hanna Arendt, na ordem dos princípios e da acção - conteúdo os princípios, forma a acção - colocou em Verdade e Política. Importa questionar: até que ponto enganar é consubstancial à acção política? Ser-se político implica ser-se demagogo e, no limite, um fazedor de mentiras? Até que ponto a defesa de princípios e de valores se equilibra com uma forma de acção que parece diluir ou mesmo pôr em causa esses princípios e valores? Quando os princípios e valores cedem constantemente ao imediatismo dos lugares-comuns, para que servem programas políticos? Quando aos programas sucede o calendário das agendas, que planeamento podemos esperar da parte de quem nos governa? Se a visão crítica de Arendt é indissociável da ascensão do nazi-fascismo na Alemanha e noutros países na Europa dos Anos de 1920/30, a ascensão da extrema-direita europeia nos nossos dias não deveria ser pensada em termos semelhantes aos da discípula de Karl Jaspers? É a palavra corrupta da propaganda que compromete a autora de As Origens do Totalitarismo com uma tese que, hoje, me parece estar de novo a fazer caminho: que realidade tem a verdade se a verdade não tem poder e peso no espaço público? Em que momento, no seio das democracias, a verdade se tornou uma virtude abstracta, uma figura da impotência? Sem a emergência de uma linguagem que despreza a verdade, poderiam Hitler, Mussolini, Nixon, G. Bush (o pai e o filho), ou Trump ascender aos lugares a que ascenderam? 

"A questão essencial é, na perspectiva que aqui defendo, a mesma que Hanna Arendt, (...) colocou em 'Verdade e Política'. (...) Até que ponto enganar é consubstancial à acção política? Ser-se político implica ser-se demagogo (...)?"

A questão levantada pela autora de On Violence prende-se com algo muito mais profundo e que, em termos gerais, tem que ver com a alma da Europa. Entenda-se: com a tentação dos europeus para o suicídio. Como bem viu Rob Riemen em Nobreza de Espírito: Esse Ideal Esquecido (2011), em períodos de crise a Europa procura proteger-se da vertigem da História regressando a novas formas de paternalismo que a possam compensar de uma espécie de sensação de orfandade. Num continente amnésico e em que imperam os tecnocratas, Hanna Arendt é uma voz profética. 

Hoje só temos os falcões de guerra que nos governam, fruto da ideologia gestora que tudo afere pelo critério ditatorial do mensurável e do lucro imediato. Se não pode ser medido não pode ter sucesso. Só tem sucesso o que tem milhares de likes e gera lucro. Estes e outros factos provam a correcção do que Harendt escreve em Verdade e Política: jamais a boa-fé fez parte da acção política. Mas há uma dimensão nova nestes tempos de expansão global dos media e, em especial, do digital. Não só a boa-fé não conta para efeitos de ascensão política como, o que mais conta, é a afirmação da ambição total do político e a sua total falta de boa-fé. De Trump a Bolsonaro, de Orbán ao “El Loco” que preside aos destinos da Argentina, e, à nossa escala, das cínicas atoardas dum Ventura, à não menos hipócrita babugem do bem-comportadinho discurso dum Bugalho, os populismos são fruto da linguagem tentacular que impõe o sucesso como critério de verdade para se ser político. Esforço, trabalho, experiência, conhecimento do país real, isso já não importa. Que sucesso e que progresso? Nosso? Do país? Não. O sucesso do comentador-político. O sucesso do seu ego. A própria noção de progresso é determinada pelo sucesso das carreiras unipessoais. Quando falam de sucesso e de progresso é deles que falam. Para obterem esse sucesso e progresso precisam de nós, isto é, do nosso voto. Isto tudo deveria ter outro nome. E quem faz o progresso e o sucesso dessa figura? A elite que o protege e a quem ele irá proteger sempre. Neste particular, como teorizou Marshall McLuhan, os meios de comunicação valem pelo que são: meios, assim, sem mais. Portanto: quando um grande número de políticos devém político porque foi, primeiro, comentador, um opinion maker é ainda a Hanna Arendt que teremos de recuar ou ao teórico canadense da comunicação. Tese: já não há verdade, só há a realidade sem conteúdo dos slogans. E, assim sendo, devemos perguntar: há democracia quando os cidadãos ficam reféns deste tipo de políticos?

A verdade da política tem sempre que ver com a inverdade da linguagem ou a ausência de uma linguagem da verdade. Hoje a questão para os eleitores não é já saber se Sebastião Bugalho é de direita (e de que direita), ou se Marcelo é um maquiavélico manipulador das (suas) verdades. A questão é saber quem explora e quem é explorado, quem está no topo da cadeia alimentar e quem, como os cidadãos comuns, é carne-para-canhão. A verdade dos factos morre no meio de tanto comentário, de tanto comentador. De Marcelo a Bugalho (inúmeros políticos se põem de permeio, fazendo um arco de várias gerações), a questão que os portugueses deveriam colocar é mais simples: por que razão a política está a ser feita, em grande parte, por quem foi um dia comentador? Ou por que razão os políticos parecem estar condicionados pelo que dirão este ou aquele comentador.

A questão que os portugueses deveriam colocar é mais simples: por que razão a política está a ser feita, em grande parte, por quem foi um dia comentador?

Deveríamos perguntar: comentar e governar são sinónimos? Com que conhecimento da realidade do país pode um jovem ex-comentador ser candidato seja a que lugar político for? O que viveu? Com que dificuldades se debateu quem, há bem pouco tempo, auferia 7000 euros mensais fazendo comentário? Que percurso foi o deste e de outros candidatos? O que esperar de políticos para quem fazer política equivale a ser-se protegido das classes privilegiadas? Pode-se hoje, com enorme sucesso, subverter a linguagem da verdade na política numa linguagem da mentira ao serviço de uma política. “Uma mentira repetida muitas vezes um dia passa a ser verdade”, disse um nazi célebre. É justamente no plano da mentira e da verdade que a ascensão de comentadores televisivos ao estatuto de políticos deve ser discutida.

Perante o aumento de 47 % de comentadores na televisão portuguesa, dois factos são absolutamente claros: é a televisão quem está a determinar o sentido dos votos em Portugal. Esse fenómeno ocorre acima dos 40 anos de idade. Falamos dos que estão em franca idade activa, daqueles que dinamizam o mercado de trabalho. Falamos da massa que vota. Há, depois, os outros, os eleitores que, muito jovens, constroem a sua leitura do país nas redes sociais, viveiro dos extremismos. Falamos de massa, de massas. Da massa que vota. Este conceito, o de “massa” - o informe, espaço que faz desaparecer o indivíduo - oferece-nos outro eixo interpretativo a ter em conta: a televisão, bem como os partidos que da televisão se servem para potenciar os seus candidatos, olham para os eleitores como um organismo que eles sabem estar quase desvitalizado. O político-comentador parte do princípio simples de que, das margens da massa de cidadãos que consomem televisão, jamais poderá aparecer quem possa desafiá-lo.

Dito de outro modo, a massa (entenda-se: o informe, os cidadãos acríticos) é o alvo preferencial da ideologia. Nenhuma ideologia sobrevive sem fazer tábua rasa das margens da massa, isto é, sem identificar os eventuais rivais - os cidadãos que não pertencerão nunca à massa e se destacam nos movimentos de contestação social. São esses cidadãos não-arregimentados pelas classes do poder que podem fazer frente aos chamados aparelhos ideológicos de Estado. Se, por acaso, de entre as margens da massa surgem um, dois ou três líderes que não se deixaram diluir e massificar, logo os organismos de massificação tentam incorporar esses indivíduos no sistema que, segundo Althusser, é um sistema sempre censório. Os aparelhos ideológicos de Estado são antecâmaras dos aparelhos repressivos de Estado que serão reactivados quando quem manda está ameaçado. Ora, os políticos que foram comentadores jamais constituirão uma verdadeira alternativa à política, porquanto não vêm das margens do sistema. Um Sebastião, por muito que Montenegro diga que ele é “disruptivo”, é um filho-família da ideologia oca ou, como o próprio Bugalho confessou: alguém que sabe muito de política porque, quanto mais não seja, conhece os filhos dos políticos. Até passa férias com políticos… Tudo dito, pois.

Última nota: É pela imposição dum pensamento “Yes We Can” e pela doutrinação duma ideologia centrada no optimismo e no “pensamento clean” que as democracias ocidentais têm aberto espaço ao recrudescimento das ideologias que, cedo ou tarde, farão as democracias reféns do populismo, numa primeira fase e, numa segunda fase, de regimes totalitários. O optimismo, diz-nos Byung-Chul Han, não significa ter esperança, ou ser portador de uma esperança. O político actual - se for um jovem, isso será óbvio - falará, sempre sorridente, de forma optimista. Para os bugalhos desta vida, Chelas é apenas um nome e não a realidade factual da precariedade, da falta de oportunidades, da impossibilidade de sonhar. Ao comentador-político falta-lhe, apesar do optimismo, a dimensão trágica do político que soube o que foi ter dificuldades para chegar onde chegou (penso em Cunhal, em Soares, em Jerónimo de Sousa). Ter esperança não significa ser-se optimista. Portugal precisava de uma classe política que não medisse a felicidade dos outros pelo seu grau de sucesso ou pelo seu progresso na carreira, seja ela a carreira televisiva ou a parlamentar. A verdade é uma só: o comentador-político jamais saberá como estar e ser em face da realidade do país. Não sabe o que é viver com 600, 800, 1000 euros mensais. Esse comentador-político pode até vir a palrar na Europa, mas nunca saberá com que verdade nas palavras (e com que palavras de verdade) poderá falar dessa bandeira de cinco quinas.


Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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