A trégua de Putin

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Em Astana, há uma estátua de Rakhimzhan Koshkarbayev, o soldado do Exército Vermelho que a 30 de abril de 1945 terá sido o primeiro a subir ao edifício em ruínas do Reichstag para nele pôr a bandeira vermelha com a foice e o martelo. Era noite e não foi possível a fotografia tão desejada por Estaline a simbolizar a queda de Berlim, pelo que a imagem que conhecemos terá sido feita uns dias depois, com outros soldados a posar. Mas o feito de Koshkarbayev serve bem para ilustrar como no Cazaquistão, tal como noutras ex-repúblicas soviéticas, o triunfo na Segunda Guerra Mundial é visto como um momento sagrado, ao ponto de ser referido como a vitória na Grande Guerra Patriótica. E celebrado festivamente a 9 de maio, nomeadamente em Moscovo, onde este ano uma grande parada militar celebrará os acontecimentos de há 80 anos.

Vladimir Putin, filho de um veterano da Grande Guerra Patriótica, sabe bem o simbolismo da vitória sobre a Alemanha, e quando oferece uma trégua na Ucrânia de três dias entre 8 e 10 de maio joga com o sentimento patriótico dos russos, mas também tem consciência que muitos ucranianos sentem orgulho no contributo para a derrota do nazismo (haverá também parada em Kiev, dia 9) . No fundo, escolhe como pretexto para a trégua algo que remete para um passado partilhado por Moscovo e Kiev, tal como a trégua anterior durante a Páscoa Ortodoxa remetia para uma tradição de religiosidade comum de russos e ucranianos.

O desempenho do exército soviético na Segunda Guerra Mundial depois da invasão surpresa em 1941 passa por momentos decisivos como a resistência ao cerco de Estalinegrado, a operação Bagration (quase em simultâneo com o Dia D dos anglo-americanos), a libertação de Auschwitz ou a tomada da capital do III Reich, com o suicídio de Hitler no bunker e a rendição alemã aos Aliados. Mas Moscovo tem de assumir dessa época o Pacto Germano-Soviético, que além de ser de não-agressão entre inimigos ideológicos, permitiu a nazis e soviéticos a partilha da Polónia em 1939. Tal como Kiev, onde setores ultranacionalistas veneram abertamente Stepan Bandera, não pode ignorar que este colaborou com o exército invasor alemão.

A nova trégua de Putin foi, como já antes a da Páscoa, recebida com desconfiança por Volodymyr Zelensky, que insiste na trégua de 30 dias que os Estados Unidos propuseram com acordo da Ucrânia. Veremos como reage Donald Trump à oferta russa, até porque em paralelo o Kremlin reafirmou que uma paz duradoura passa pelo reconhecimento da Crimeia e outros territórios do Leste da Ucrânia como parte da Rússia. Se os 80 anos da derrota do nazismo deviam ser de celebração conjunta por uns e outros, na antiga União Soviética como no resto do mundo, a realidade está longe disso. Uns dias de pausa nos combates será sempre algo de positivo, mesmo não resolvendo nada, como é evidente.

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