Pergunto-me muitas vezes porque é que, sendo Portugal um país que tem um território televisivo saturado de ficções totalmente formatadas (novelas e afins), contaminado por um desavergonhado anti-humanismo (Big Brother e derivados), enfim, um território que promove jogadores, treinadores e dirigentes do futebol a filósofos quotidianos de coisa nenhuma (jogo a jogo), porque é que num país assim ocupado por tanto mediocridade comunicacional as reflexões sobre o papel social da televisão quase desapareceram do espaço mediático. Repito (para não confundir nem melindrar os que, com todo o mérito, continuam a refletir sobre o assunto): quase desapareceram... Há pouco mais de trinta anos, no período de afirmação dos canais privados, alguém com importantes responsabilidades editoriais explicava-me que era assim porque “os críticos de cinema não percebem nada de televisão”. Recordo com humor tal invectiva. Aliás, agora, com a proliferação exponencial de “influencers” que se apresentam como críticos de cinema, até poderíamos acrescentar, com propriedade, que há um sector imenso de críticos de cinema que não percebem nada de... cinema. Não estou a caricaturar. Porquê? Porque tudo isto, das tendências mais esmagadoras aos detalhes mais irónicos, decorre de algo muito mais fundo, bastante mais gravoso para as nossas vidas e, para usar uma expressão voluntariamente majestosa, para a nossa consciência coletiva. A resistência a debater as muitas atribulações do espaço televisivo não pode ser dissociada de uma demissão (quase) global da discussão da cultura em geral, logo também da educação — até porque, mesmo não esquecendo as coisas inteligentes que (ainda) podemos consumir, estamos a ser deseducados por muitas formas de fazer televisão. .Observe-se, a esse propósito, a indiferença global da classe política, direitas e esquerdas confundidas. Para lá da pequena agitação anual em torno das percentagens decimais que se acrescentam (ou retiram) ao orçamento da cultura, o pensamento político não dá mostras de reconhecer que os valores culturais dominantes passaram a ser encaminhados, por vezes impostos, pelos valores que dominam a própria atividade televisiva. Essa indiferença resulta, aliás, de uma crescente dependência dos discursos políticos em relação às suas formas de representação televisiva. No limite mais obsceno de tais práticas, há muitas intervenções de políticos que, no pequeno ecrã, elaboram as suas ideias (ou a falta delas) a partir de referências a intervenções de outros políticos... noutros momentos televisivos. Quer isto dizer que ninguém (enfim, quase ninguém) dá a devida importância ao facto de a televisão — com todas as suas diferenças internas — existir como um elemento nuclear da configuração, não apenas do confronto de ideias políticas, mas do funcionamento de todas as dinâmicas sociais. Vivemos todos os dias pela televisão e, não poucas vezes, através da televisão, ao mesmo tempo que nos comportamos como se a televisão não existisse. Nem sequer damos atenção ao facto sintomático de alguém como Donald Trump desenvolver toda a sua estratégia anti-democrática através da televisão e, cada vez mais, contra aquilo que na televisão resiste à manipulação das consciências. Os gritos histéricos em defesa da “liberdade de expressão” são escassos (mesmo quando servem de munição para alguns clips televisivos). O que tem acontecido nos EUA, com o afastamento de figuras emblemáticas dos “talk-shows” mais críticos da administração Trump, está muito longe de ser um bailado de piadas mais ou menos provocatórias, ou um mero jogo de vaidades. Afinal de contas, Trump chegou onde chegou em grande parte através de muitos anos de uma presença insinuante no pequeno ecrã — entenda-se: em todo o tecido social americano. Não que o protagonismo televisivo seja um método de fabricação de ditadores. Sugerir isso seria duplicar o maniqueísmo compulsivo que passou a contaminar muitos “debates” televisivos. Em todo o caso, seria tempo de perguntarmos se só nos restam políticos que concebem a sua presença televisiva como um teatro cínico para conquistar os eleitores. Ou se ainda há políticos com serenidade para pensar, e ajudar a superar, o esvaziamento cultural do país — sem esquecer que não é possível fazê-lo sem pensar também o papel fulcral da televisão. Jornalista