O setor jurídico, tradicionalmente caracterizado pela sua dependência de processos manuais e pela valorização do conhecimento acumulado, irá sofrer uma transformação sem precedentes. A Inteligência Artificial (IA) irá reconfigurar os alicerces da justiça e já o está a fazer na advocacia. A magnitude da mudança é evidenciada por estudos que apontam para um “futuro” onde a colaboração entre humanos e máquinas assumirá um padrão de habitualidade. Relatórios da especialidade indicam que até 44% das tarefas jurídicas poderão ser automatizadas em algum momento. De forma mais imediata, estudos do McKinsey Global Institute sugerem que aproximadamente um quarto das atividades atualmente realizadas por advogados pode ser automatizado com o recurso a tecnologias de IA já existentes. Os estudos não anunciam a obsolescência dos profissionais do direito, mas sim a redefinição do seu papel, libertando-o de tarefas repetitivas para se concentrar em atividades de maior valor estratégico e acrescentado, com novos desafios éticos e regulatórios. Inicialmente, estas ferramentas focavam-se na automação de tarefas repetitivas de baixo valor, como a gestão de documentos, funcionando como meros assistentes. Hoje, contudo, as capacidades preditivas e generativas estão a ganhar prevalência sobre a utilização em tarefas rotineiras. Na realidade, ferramentas de IA podem antecipar resultados judiciais e as suas capacidades generativas são capazes de redigir projetos de petições, de decisões judiciais e drafts de contratos complexos. Esta progressão de um “assistente” para um “colaborador” que participa em tarefas analíticas e criativas, força uma reavaliação fundamental do que constitui o trabalho jurídico de alto valor. Se a máquina pode prever desfechos e esboçar argumentos, o valor intrínseco do advogado e do magistrado desloca-se, de forma decisiva, para a estratégia complexa, o relacionamento com o utilizador da justiça e, crucialmente, a supervisão ética, competências que permanecem firmemente no domínio humano. O judiciário frequentemente sobrecarregado por um volume massivo de processos, encontra na IA uma aliada estratégica para combater a morosidade e otimizar a gestão administrativa. A aplicação da IA neste contexto foca-se em automatizar tarefas repetitivas e de grande volume, libertando magistrados para se dedicarem a atividades que exigem análise e julgamento humano. Uma recente iniciativa no Tribunal de Justiça de Pernambuco demonstrou que um sistema de IA conseguiu realizar a triagem e movimentação de processos em apenas 15 dias, uma tarefa que, se realizada manualmente, consumiria 18 meses. Este salto de produtividade não só acelera a tramitação processual, mas também otimiza a alocação de recursos humanos, direcionando-os para onde são necessários. Ferramentas de IA podem atuar como “assistentes inteligentes” para os magistrados, realizando tarefas como a elaboração de minutas de decisões e despachos, a geração de resumos automáticos de peças processuais volumosas e a identificação de contradições em textos jurídicos, oferecendo uma base de trabalho que acelera as etapas técnicas do processo judicial decisório. A análise aprofundada destas iniciativas noutros países revela que o principal motor para a adoção da IA no judiciário não é a substituição do juiz, mas sim a necessidade de aumentar a capacidade para lidar com um sistema cronicamente sobrecarregado. No entanto, não nos enganemos, pois, à medida que as capacidades analíticas da IA evoluem, a questão sobre onde traçar a linha entre “suporte administrativo” e “raciocínio judicial” tornar-se-á um imperativo. Advogado e sócio fundador da ATMJ – Sociedade de Advogados