A reforma da ordem mundial é maior do que a China

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Não é certo que a expressão tenha sido inventada por Confúcio, mas a cimeira de Tianjin confirmou o ensinamento que uma imagem vale mais que mil palavras. Refiro-me, muito especialmente, à fotografia que mostra Xi Jinping a saudar calorosamente Vladimir Putin, com Narendra Modi em pano de fundo. Todos muito felizes e contentes.

Esta foto apareceu em grande, na primeira página de vários jornais do chamado Sul Global, especialmente na Ásia. O ângulo escolhido faz de Xi a figura dominante, um gigante perante um Putin mais pequeno e menos solto. Modi, embora presente, parece não fazer parte da conversa. Dá, no entanto, a impressão que não pode ser ignorado. Não o será, aliás, nos seus contactos bilaterais com os chineses e os russos. A Índia conta cada vez mais nas relações geopolíticas.

É difícil acrescentar muito mais a esta imagem. Aliás, a cimeira deixou vários líderes ocidentais à procura das palavras que pudessem dar sentido às diferentes facetas do que aconteceu em Tianjin e depois em Beijing.

Tianjin foi o local escolhido para esta cimeira em grande estilo da Organização de Cooperação de Xangai. É uma cidade portuária situada a 150 Km a sudeste de Beijing, símbolo da importância dada pelos dirigentes chineses ao comércio internacional. Tive como contraparte, em certo momento, um embaixador chinês que havia sido presidente do município de Tianjin. Tínhamos contactos frequentes, por razões profissionais. No encontro inicial lembrou-me que na China as dimensões são diferentes: o seu município teria na altura 10 milhões de habitantes. Agora, passadas três décadas e em resultado das migrações dos meios rurais para as cidades, devidas à modernização da economia e à expansão exponencial das exportações, Tianjin conta 15 milhões.

A cimeira serviu as ambições de Xi Jinping: ser visto como o arquiteto de uma nova ordem internacional e fazer passar a política global da China como um modelo alternativo ao que diz ter sido criado pelo Ocidente. A Iniciativa de Governação Global, que anunciou durante a reunião, tem esse objetivo. Garante que se destina a reforçar o multilateralismo e o respeito pela lei internacional. Teve certamente o aplauso de Putin.

Se na realidade fossem essas as intenções, Xi deveria ter sobretudo definido como prioridade a reforma do sistema das Nações Unidas, para mais quando o Secretário-Geral tem em curso um processo de reestruturação, conhecido como UN80, que deverá ser apresentado dentro de semanas à Assembleia Geral da ONU.

A defesa dos princípios anunciados por Xi, a começar pela igualdade entre os Estados e o aprofundamento da cooperação internacional, é a razão de ser das Nações Unidas. A iniciativa do tipo agora apresentado pode ser considerada uma estocada final no projeto de António Guterres, que estava aliás presente na sala e aceitou aplaudir aquilo que poderá ser uma ameaça para a relevância e mesmo para a sobrevivência da ONU

política. Dir-se-ia que tínhamos aí um prisioneiro a bater palmas ao juiz que acabara de destruir os seus sonhos e de o condenar à marginalização total.

As estruturas de governação multinacional devem ser mais representativas e respeitadas por todos os Estados-membros. É isso que se espera que a China defenda, enquanto potência mundial. A proliferação de associações regionais não deve servir para reforçar as ambições de domínio e de competição de alguns. Nem para criar uma falsa dicotomia, como a defendida em Tianjin: de um lado, a democracia liberal e do outro, a prosperidade, como pilares de legitimação dos diferentes regimes políticos. A liberdade e o respeito pela vida são os valores maiores.

Foi, acima de tudo, a cimeira dos que se opõem à ordem política internacional que tem sido construída ao longo das últimas décadas. E uma manifestação contra a inconsistência da política internacional de Donald Trump. America First, não. China acima de todos ou no centro do mundo, tampouco. Cooperação internacional primeiro, isso sim.

Trump aparece, na verdade, como o grande bombo da festa, embora não seja certo que o tenha entendido. A amizade entre Xi e Putin é bastante sólida. A construção de um novo gasoduto, que permitirá à China importar gás da Sibéria, é um exemplo da excelência desse relacionamento. Trump e os seus seguidores pensavam poder criar um fosso entre eles. Ficaram pasmados com as imagens saídas de Tianjin.

E agora temos a Índia a juntar-se ao grupo, empurrada pela política de Trump e atraída por razões estratégicas próprias. Modi aproveitou o evento para aproximar a Índia da vizinha China e para reforçar a relação com a Rússia de Putin. Mas trata-se de um político sabido: antes de aterrar na China, Modi fez escala no Japão, onde assinou uma série de acordos de cooperação. Mostrou assim a Beijing, a Moscovo e a Washington que sabe jogar em vários tabuleiros. E lembrou-nos que uma das ideias que prevalece naquela parte do mundo a que Índia também pertence é que o futuro se constrói preferencialmente na Ásia, pela Ásia e por toda a Ásia.

Conselheiro em segurança internacional.

Ex-secretário-geral-adjunto da ONU

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