A pureza perigosa

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Para o passado domingo, 15 de dezembro, na Cinemateca Francesa, estava marcada uma projeção de O Último Tango em Paris (1972), de Bernardo Bertolucci (1941-2018); seria uma sessão integrada numa retrospetiva dedicada a Marlon Brando (1924-2004). Acusando a Cinemateca de não propor qualquer contextualização do filme - entenda-se: explicitando o facto de integrar uma cena de violação registada sem o consentimento de Maria Schneider (1952-2011) -, várias personalidades e associações feministas manifestaram-se com veemência contra aquela opção de programação.

A Cinemateca começou por mostrar disponibilidade para fazer preceder a sessão de uma contextualização do filme (que foi exibido na mesma instituição, em 2017, numa homenagem ao seu diretor de fotografia, Vittorio Storaro). Tal hipótese não se consumou: na noite do dia 14 a Cinemateca cancelou a sessão. O seu diretor, Frédéric Bonnaud, lembrou a necessidade de “apaziguar os espíritos” face aos “riscos de segurança” que o evento passou a envolver, acrescentando que “somos uma cinemateca, não um campo entrincheirado”.

Infelizmente, nestes tempos de poderosos fundamentalismos, a metáfora bélica adquiriu algumas perturbantes ressonâncias. Lembro-me, por exemplo, de Eu Vos Saúdo, Maria (1984), de Jean-Luc Godard, ter sido exibido em Lisboa, na sala da Cinemateca Portuguesa, com a presença de forças de segurança que, aliás, impediram alguns manifestantes religiosos de boicotar a respetiva projeção - foi no dia 29 de junho de 1985.

Cartaz do 'Último Tango em Paris', o filme que novamente gerou polémica, desta vez junto da Cinemateca FrancesA. IMAGEM DE ARQUIVO

Estamos a viver num mundo contaminado por esta “pureza perigosa” que Bernard-Henri Lévy analisou num livro admirável, realmente e tristemente visionário (La Pureté Dangereuse, ed. Grasset, Paris, 1994). O novelo de questões que tudo isto suscita não se esclarece cedendo à gritaria das pessoas ofendidas, gritando ainda mais. Creio mesmo que estas pessoas tendem a esquecer um outro fator de perturbação, inerente às palavras da própria Maria Schneider: “Mesmo tendo em conta que aquilo que Marlon fez não era real, eu chorei lágrimas verdadeiras. Senti-me humilhada e, para ser honesta, um pouco violada, quer por Marlon, quer por Bertolucci.”

A “pureza” que Lévy analisa nasce sempre da divisão do mundo em duas trincheiras (“puro/impuro”, por vezes “feminino/masculino”). A sua única noção operativa promove a anulação ou o silenciamento dos que (“impuros”) não satisfazem os ditames do politicamente correto.

No limite, para lá das infinitas nuances  dos factos - o que não significa negar a legitimidade daquela queixa que Maria Schneider entendeu explicitar numa entrevista de 2007, ao jornal britânico The Daily Mail -, todas as formas de comportamento humano vão sendo reduzidas a sintomas compulsivos de militância.

Nem mesmo uma pessoa tão inteligente como Jessica Chastain escapou a tal facilidade quando, em 2017, na esteira do movimento #MeToo, se exprimiu em tom panfletário: “A todos os que gostaram do filme, estão a ver uma jovem de 19 anos a ser violada por um homem de 48 anos. O realizador planificou a agressão. Isso põe-me doente.” Provavelmente, Chastain ficará ainda mais chocada se lhe lembrarmos que as raízes artísticas e culturais do seu desmedido talento estão num modelo de representação de que Brando é uma referência incontornável.

A complexidade que tudo isto envolve (muito resumida nas observações anteriores) pode ser recoberta, difamada e anulada por histerias ideológicas que, desgraçadamente, alguns meios de comunicação, sobretudo de raiz televisiva, acolhem como matéria quotidiana da agitação que alimentam. Digamos apenas, para simplificar, que algo de inquietante se passa quando uma instituição com o historial e o prestígio da Cinemateca Francesa admite sair de campo por causa dos protestos suscitados por um título que programou.

Penso em João Bénard da Costa analisando os protestos que precederam a sessão de Eu Vos Saúdo, Maria, em 1985 - para ele, com contextualizações mais ou menos imediatas e elaboradas, uma cinemateca não se devia demitir do ato de dar a conhecer os contrastes e contradições do cinema, dos filmes e da sua história. Ou, como dizia o outro, das suas histórias - o plural é uma coisa bonita de se ver.

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