A sessão anual de alto nível da Assembleia Geral da ONU começa na próxima semana. Os dirigentes da maioria dos Estados que compõem a cena internacional estarão em Nova Iorque. Uma das exceções será o Presidente da Autoridade da Palestina, Mahmoud Abbas. A administração americana não lhe concedeu o visto de entrada, nem à sua delegação. Pode recusar atribuir o visto, e já o fez no passado, em raras ocasiões, apesar do Acordo de Sede assinado por Washington em 1947. Esse acordo estipula a obrigação geral, mas não absoluta, de conceder vistos aos representantes dos Estados que tenham a intenção de participar nas reuniões previstas pela ONU, sobretudo no caso da Assembleia Geral.Como sempre, os EUA justificaram a decisão invocando razões de segurança nacional e de política externa. Os motivos são claros, na realidade. Trata-se de mostrar, primeiro, um alinhamento total da liderança americana com o governo de Israel. Segundo, de exprimir o desagrado pela iniciativa de Emmanuel Macron e de outros líderes de trazer à Assembleia Geral a proposta do reconhecimento da Palestina como um Estado de pleno direito da ONU. E finalmente, punir os palestinianos por terem apresentado várias queixas contra Israel nos tribunais internacionais sediados na Haia. De qualquer modo, a Assembleia irá votar sobre a Palestina, tal como proposto pela França, o Reino Unido, a Espanha, o Canadá, a Arábia Saudita e outros membros. Para já a ONU conta com 147 países que reconhecem a Palestina como Estado. Esse número deverá aumentar significativamente, depois da votação. Israel ficará diplomaticamente mais isolado, se se confirmar que a sua política em relação à Palestina não é aceite pela quase totalidade dos Estados, com a exceção dos EUA e pouco mais. A votação terá um valor político simbólico, não vinculativo. Nenhum Estado pode fazer parte integral das Nações Unidas apenas com o voto favorável da Assembleia Geral. Precisa, inevitavelmente, do apoio do Conselho de Segurança, sem nenhum veto dos cinco membros permanentes. Neste caso, é evidente que os EUA irão exercer o seu veto. Trump vai ignorar a vontade da comunidade das nações. E lembrar-nos que o direito de veto é uma aberração histórica, que precisa de ser revisto, ou no mínimo, tendo em conta a nova relação de forças que existe no quadro internacional, profundamente restringido.O discurso de Trump, na manhã do primeiro dia (23/09) é esperado com enorme apreensão. Começa, desde logo, com uma originalidade: pela primeira vez, um presidente americano fala na tribuna sem que o processo de nomeação de um Representante Permanente dos EUA tenha sido completado. Em maio, a Casa Branca anunciou que Mike Waltz seria o representante da Administração Trump na ONU, após ter desempenhado o importantíssimo papel de Conselheiro da Segurança Nacional e ter sido logo demitido, passadas breves semanas. A sua confirmação ainda se arrasta pelos corredores do Senado. Os EUA são representados em Nova Iorque por uma equipa de interinos, que poucas ou nenhumas diretrizes recebem de Washington. Trump não tem a ONU na sua lista de prioridades, exceto quando se trata de sair de certas organizações ou de cortar ou eliminar as contribuições financeiras, que tem a obrigatoriedade de pagar ao sistema onusiano. Deverá certamente insistir numa ONU focada fundamentalmente na paz e na segurança internacional, palavras ditas por razões de mera imagem pessoal. Trump sonha ser visto como o mediador por excelência dos conflitos, o campeão da paz, merecedor do Prémio Nobel. Não acredita na capacidade da ONU nessa matéria. Na realidade, creio que não dá qualquer valor às Nações Unidas. É apenas uma tribuna que lhe permite exibir o seu ego desmesurado. Mas não quer uma ONU ativa em nenhum dos três pilares do sistema: a estabilidade internacional, o desenvolvimento e os direitos humanos. A incumbência da estabilidade, que deveria decorrer do respeito pela Carta das Nações Unidas e pelo direito internacional, cabe aos americanos, segundo a sua maneira de pensar. O desenvolvimento, o progresso social e as questões do ambiente são assuntos para os europeus. Esquece-se, todavia, que nessas áreas quem marca pontos são os chineses, que estão profundamente empenhados numa ordem política e económica alternativa, numa ampla aliança com o chamado Sul Global. Quanto aos direitos humanos, a questão será deixada ao domínio do uso da força e às interpretações que cada Estado fará da dignidade e da vida dos seus cidadãos. Para os chineses e os seus aliados, os direitos humanos são um assunto de soberania nacional, que não deve ser incluída na agenda multilateral.Tudo isto significa a marginalização das dimensões políticas e humanas das Nações Unidas. A próxima semana permitir-nos-á compreender melhor o que poderá ser o futuro da ONU.Entretanto, António Guterres lançou em maio aquilo que designou como um exercício de reforma do sistema. Chamou-lhe UN80 e disse que teria três objetivos: reduzir as despesas; eliminar os mandatos que deixaram de fazer sentido; e proceder a uma transformação institucional. Era um plano ambicioso, que só poderia ser bem-sucedido se tivesse o apoio dos grandes países e se fosse realizado em diálogo com o pessoal da organização. Nada disso aconteceu. Na realidade, a prioridade deveria ter sido ir de porta em porta e rogar aos Estados em falta, como os EUA e a China, que honrassem os seus compromissos financeiros. A reforma da ONU começa com a responsabilização de cada Estado-membro. Conselheiro em segurança internacional.Ex-secretário-geral-adjunto da ONU