Durante décadas, a Europa acreditou que a força da norma bastava para moldar o mundo. Falava a linguagem do direito, da diplomacia e das instituições multilaterais o idioma da previsibilidade, da regra e da legitimidade formal. Foi essa gramática que sustentou a sua influência e lhe conferiu autoridade moral no pós-guerra. Mas o mundo mudou de dialeto. O poder já não se expressa apenas em tratados, mas em infraestruturas, tecnologia, energia e influência narrativa. E nessa nova gramática global, o Sul deixou de ser apenas um espaço geográfico: tornou-se um sujeito político com voz própria e uma linguagem distinta.O Sul Global fala a língua da urgência. É uma linguagem de sobrevivência, construída a partir da escassez e da necessidade. Quando discute segurança, fala de soberania alimentar; quando fala de desenvolvimento, fala de autonomia energética; quando reivindica poder, fala de reconhecimento histórico. A sua gramática é pragmática, direta e profundamente enraizada na experiência. Desconfia da retórica moralista do Norte e da promessa universalista de um modelo que nunca o incluiu por inteiro.A Europa, por sua vez, continua a traduzir o mundo em códigos normativos. Acredita que a legitimidade nasce da lei e que o consenso é a via da ordem. Mas essa convicção parte de um privilégio: o de ter vivido décadas de estabilidade, prosperidade e paz. Para quem nunca a teve, a norma não é suficiente e a vulnerabilidade não se resolve com discursos. O Sul fala em termos de resiliência, de adaptação e de sobrevivência, enquanto a Europa continua a falar em termos de regulação, de conformidade e de valores.Há, contudo, um ponto de convergência possível: ambos reconhecem que a segurança deixou de ser militar para se tornar existencial. A mudança climática, as cadeias tecnológicas, as crises energéticas e as novas dependências estratégicas estão a reconfigurar o mapa do poder e da cooperação. É aqui que a Europa pode reaprender a escutar e não apenas a falar. Pode perceber que a influência, hoje, não se mede apenas pela força, mas pela capacidade de traduzir linguagens e construir confiança.Compreender a linguagem do Sul Global não significa abdicar dos valores europeus, mas traduzi-los para um mundo que já não os toma como universais. O poder deixou de se exercer pela tutela moral e passou a ser negociação - uma interação entre identidades, memórias e realidades distintas. A Europa precisa de voltar a pensar estrategicamente, agir como player e competidor, e abandonar o paternalismo que a mantém distante da realidade global. Só assim transformará valores em poder e poder em presença, num sistema que já não reconhece hierarquias, mas equilíbrios.A gramática do século XXI não será escrita apenas em Bruxelas, Washington ou Pequim. Será polifónica, redigida em múltiplas vozes, com sotaques de Lagos, Jacarta, Brasília e Nairobi. A verdadeira questão não é se o Sul aprenderá a falar como a Europa, mas se a Europa será capaz de falar e agir como potência estratégica num mundo que já não se convence com discursos, mas com resultados. Doutorada em Segurança Internacional