Esta semana será publicada a Edição Especial 50 da revista Segurança & Defesa, onde escrevi um artigo extenso dedicado ao diagnóstico estratégico da Europa e à necessidade imperiosa de o continente reencontrar a força, a ambição e a maturidade que lhe permitam enfrentar um ambiente internacional em acelerada transformação. Esse texto foi escrito num momento em que a nova Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos ainda não era pública. A leitura da NSS agora divulgada confirma a atualidade das questões que procurei analisar e demonstra que os desafios estruturais que identifiquei não resultam de circunstâncias transitórias, mas correspondem a tendências claras que se tornaram agora impossíveis de ignorar. Não se trata de qualquer antecipação profética da minha parte, mas simplesmente de reconhecer que a realidade estratégica revela a sua própria lógica quando observada com atenção e sem ilusões.A reação europeia à nova Estratégia americana oscilou entre perplexidade e inquietação, como se o continente tivesse sido confrontado com uma súbita mudança de orientação por parte de um aliado a quem nos habituámos a atribuir a responsabilidade última pela estabilidade do espaço euro-atlântico. Contudo, para quem acompanha com rigor o pensamento estratégico norte-americano, nada do que agora foi formalizado constitui novidade significativa. A deslocação das prioridades para o Indo-Pacífico, a centralidade da competição sistémica com a China, a exigência de uma repartição mais equilibrada dos encargos no interior da NATO e a afirmação de que a Europa deve assumir a parcela de responsabilidade que lhe cabe são ideias que vinham sendo reiteradas por diferentes administrações, independentemente da cor política.A surpresa não reside na Estratégia americana. A surpresa reside na dificuldade europeia em aceitar que o mundo mudou, e mudou de forma estrutural. Persistimos num entendimento quase ritualizado da segurança, como se a paz fosse uma condição natural e inesgotável, e como se a prosperidade económica pudesse substituir a força que sustenta a estabilidade internacional. A Europa habituou-se a viver num ambiente estratégico protegido, acreditando que a integração económica bastava para prevenir conflitos e que a dissuasão militar era um resíduo da história. Essa ilusão fragilizou-nos e impediu-nos de reconhecer que a política internacional continua a ser moldada pela combinação inevitável entre poder, vontade e visão. A nova Estratégia dos Estados Unidos recorda, com clareza, que o vínculo transatlântico permanece essencial, mas que qualquer aliança só se mantém robusta quando existe equilíbrio entre responsabilidades e meios. Washington não se afastou da Europa nem renunciou ao papel de pilar da segurança euro-atlântica. O que fez foi clarificar os limites da sua capacidade de assumir, sozinho, encargos que pertencem ao continente europeu num momento em que enfrenta desafios simultâneos na Ásia, no Médio Oriente, no Ártico e no domínio cibernético. Essa clarificação, longe de constituir uma ameaça, representa um convite a que a Europa recupere a maturidade estratégica que, durante décadas, abdicou de exercer. No meu artigo para a Segurança & Defesa procurei demonstrar que a fragilidade europeia não deriva de insuficiência material. Deriva antes da falta de vontade política, da dificuldade em transformar ambição em capacidade real, da tendência para adiar decisões estruturantes e do hábito profundamente enraizado de recorrer aos Estados Unidos sempre que surgem crises que exigem meios determinação. A nova Estratégia americana confirma esse diagnóstico. A Europa não pode continuar a esperar que outros substituam a sua própria responsabilidade na defesa do continente. Essa expectativa é incompatível com a realidade estratégica atual e constitui, em si mesma, um risco.A referência feita pela NSS à necessidade de procurar uma estabilização do conflito na Ucrânia gerou inquietação em alguns sectores europeus, mas essa inquietação baseia-se numa leitura incompleta. Os Estados Unidos não abandonaram a Ucrânia nem atenuaram o seu entendimento da ameaça que a Rússia representa para a segurança europeia. A questão colocada pela Estratégia é outra. Trata-se de reconhecer que uma guerra que ocorre no território europeu exige que a Europa assuma uma responsabilidade reforçada na definição dos meios e dos objetivos necessários à proteção da ordem continental. Esta clarificação não é um sinal de fraqueza americana. É um sinal de exigência para com os europeus.Não surpreende que as reações mais ponderadas tenham vindo de Helsínquia ou Tallinn, capitais que conhecem por experiência própria a natureza da pressão estratégica que paira sobre o leste europeu. A leitura que fizeram do documento americano é simples e lúcida. A segurança da Europa depende da Europa, e a proteção da ordem euro-atlântica exige que todos os membros da NATO contribuam de forma séria e proporcional para a sua defesa. Esta lucidez contrasta com a tendência, ainda presente em algumas capitais, para interpretar cada clarificação americana como uma ameaça, em vez de a reconhecer como uma oportunidade para assumir responsabilidades e reforçar a coerência da Aliança.A Europa dispôs, durante décadas, de um ambiente de segurança extraordinariamente favorável. Esse ambiente permitiu que muitos Estados adiassem investimentos, negligenciassem capacidades críticas e se habituassem a tratar a defesa como uma dimensão secundária das políticas públicas. Esse tempo terminou. O mundo entrou num período prolongado de competição estratégica e a defesa europeia já não pode ser tratada como variável residual. A Estratégia americana não cria esta realidade. Apenas a evidencia.Nada do que escrevo diminui a importância decisiva dos Estados Unidos para a segurança europeia. A NATO continua a ser a estrutura indispensável da defesa do continente e continuará a sê-lo no futuro previsível. Mas a Aliança só permanecerá credível se os europeus aceitarem a sua parte de responsabilidade e se investirem, de forma sustentada, na construção de um poder militar que complemente, e não substitua, o poder norte-americano. Soberania e liberdade não são garantias abstratas que se proclamam. São realidades concretas que se constroem diariamente.O documento agora divulgado por Washington não diminui a Europa. Exige que a Europa cresça. Convida-nos a abandonar a hesitação e a assumir, com maturidade, o papel que nos cabe na preservação da ordem euro-atlântica. A História volta a chamar pelo continente. A resposta já não pode ser adiada. A Europa terá de decidir se quer continuar a viver num estado de confortável dependência ou se deseja afirmar-se como ator estratégico capaz de garantir o seu próprio futuro. O tempo para essa decisão é agora.