A nossa cultura, os nossos valores, as nossas mulheres
A 19 de janeiro, partilhando um título da publicação do Chega especializada em notícias falsas “Folha Nacional” (FN) no qual se lia “Jovem italiana violada por três imigrantes indostânicos no Martim Moniz”, André Ventura (AV) escreveu, no Twitter/X, com a hashtag “Salvar Portugal”: “Não querem que os encostem à parede? Deviam ser arrastados no chão e pagar caro pelo que andam a fazer às mulheres europeias”.
Vale a pena analisar esta proclamação, pensada como resposta à manifestação “Não nos encostem à parede”, que uma semana antes tinha descido a Avenida Almirante Reis em protesto contra uma atuação policial que tratou pessoas provenientes de uma determinada área do mundo, apenas por esse facto, como potenciais criminosos. Porque o líder de extrema-direita não se manifesta nesta publicação contra o crime de violação em geral ou sequer contra os violadores daquela mulher em particular, mas contra “o que” um coletivo que não nomeia, mas que está descrito no título que partilha – os “indostânicos” –, “anda a fazer às mulheres europeias”.
É todo um programa em poucas palavras, o que AV nos serve num tuíte que no meu entender de não jurista cabe na definição do crime descrito no artigo 240º do Código Penal – “Discriminação e incitamento ao ódio e à violência”, no seu número 2, alínea d: “Quem, publicamente, por qualquer meio destinado a divulgação, incitar à discriminação, ao ódio ou à violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua origem étnico-racial, origem nacional (…), ascendência, território de origem (…)”.
É claro que seja quem for que cometa o crime de violação deve ser perseguido e punido - qual a dúvida? Seja um imigrante, um turista, um cidadão nacional ou um extraterrestre, e seja a vítima portuguesa, italiana, esquimó, africana, das Américas, asiática ou de outra origem qualquer.
Porém a Ventura o que interessa não é a possibilidade de ter acontecido um crime e de existir uma vítima, mas a respetiva instrumentalização. Poder-se-á até aventar que o líder do Chega festejará tal notícia, como qualquer uma que lhe dê o ensejo de acusar os homens que provêm de uma determinada área do mundo de constituírem um perigo para “as mulheres europeias” – não todas as mulheres, note-se, só as da Europa, ou seja, no seu léxico, as “brancas”.
No mesmo sentido foi, de resto, a publicação que fez, também no Twitter, na mesma semana, a 23 de janeiro, de um título da mesma FN mas emulando o grafismo do Expresso – um “truque” abjeto em que é reincidente – no qual se lia “Sete em cada 10 condenados por violação são imigrantes. Apenas 29% são portugueses”.
É apenas mentira (os únicos dados que existem sobre a nacionalidade de condenados dizem respeito a reclusos, e quanto a esses, no final de 2023 havia, como explica o jornalista David Dinis no Expresso, 27 estrangeiros– não necessariamente imigrantes, como é óbvio – para 104 portugueses). Mas é assim que se criam as famosas “perceções”. É assim que se cria um clima de medo e desconfiança, quando não de aversão e violência, contra imigrantes, e não quaisquer imigrantes – os que vêm da Ásia.
Um clima que diz que é preciso “salvar Portugal” destes estrangeiros de cor, cultura e costumes diferentes dos “nossos” que vêm para aqui atacar “as nossas mulheres”.
No mesmo sentido vimos rumar o PSD, esse partido sempre tão preocupado com os direitos das mulheres. Tão preocupado que resolveu fazer, a propósito da disciplina de Educação para a Cidadania, bandeira do combate ao que apelida de “ideologia de género” – quiçá ignorando tratar-se de uma expressão cunhada pela Igreja Católica em reação ao discurso feminista da 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher (Pequim, 1995), em cujos textos, em prol da igualdade entre mulheres e homens, se usou a expressão “género” para designar a construção social e cultural, estereotipada, das identidades feminina e masculina.
Assim, pudemos ouvir o ministro António Leitão Amaro, que tem a tutela da imigração, a aludir, na conferência dos 160 anos do DN, à necessidade de os imigrantes respeitarem os direitos das mulheres. Do mesmo governo cujo primeiro-ministro, ainda segundo o Expresso, tendo a noção de que a criminalidade não aumentou em Portugal e de que não existe uma ligação entre crime e imigração, assegurou, num discurso à porta fechada no PSD, que a segurança é tema para continuar a martelar. Porque, como argumenta um dirigente do partido no mesmo jornal, é preciso “usar os temas do Chega”, enquanto outro defende que o PSD se deve agarrar ao receio da população face aos imigrantes, “ainda que seja um sentimento assente na ignorância”.
Temos pois o partido do governo a aderir conscientemente ao discurso da ignorância e do ódio, esperançado em atrair o eleitorado da extrema-direita - alegando como justificação as percepções criadas pela aliança da extrema-direita com o tabloidismo mediático.
Não é uma surpresa – já se tinha visto noutros países, e já muitos haviam vaticinado o que valia o “não é não” de Montenegro. O que de facto é novo é que haja no partido quem assuma com tal desassombro a “tática”.
Novo é também, novíssimo, o facto de o líder do PS ter decidido nadar nas mesmas águas fétidas. Porque é exata e incompreensivelmente isso que faz Pedro Nuno Santos quando na entrevista que dá ao Expresso afirma que o país deve ser “exigente no respeito pela nossa cultura, os nossos valores”, e, questionado sobre o que quer dizer com isso, responde: “Por exemplo, a igualdade entre homem e mulher. O respeito pelas mulheres. Deve ser partilhado por todas as pessoas que querem viver e trabalhar em Portugal”.
Ora, como o secretário geral do PS deverá saber, a igualdade entre mulheres e homens, aliás a igualdade entre todas as cidadãs e cidadãos, é um imperativo da Constituição desta República. E é-o precisamente porque era necessário consagrá-lo contra a cultura e valores existentes – desde logo os da confissão maioritária no país, que respeita tanto as mulheres e as considera tão iguais aos homens que lhes interdita o sacerdócio (para não falar do resto).
Portanto, não, “a nossa cultura” e “os nossos valores” e até as nossas leis, como é claro, por exemplo, na evolução do crime de violação, estão muito longe de evidenciar uma tradição igualitária. Foi e continua a ser uma luta afirmar a igualdade entre mulheres e homens em Portugal; foi e continua a ser uma luta exigir respeito pelas mulheres em Portugal. Como feminista, exijo esse respeito e essa igualdade a todas e todos e em todas as circunstâncias. E é por o exigir que só posso execrar a sua instrumentalização.