A rejeição obstinada dos factos é um dos males mais evidentes da política contemporânea. Menos notada é a rejeição da velha lógica das coisas. Quem ganha perde e quem perde ganha, até mesmo quando os resultados são expressivos. As excentricidades tendem a aumentar em países onde as linhas vermelhas do sistema político-constitucional foram ignoradas por conveniências momentâneas..Vejam-se as eleições autonómicas catalãs, realizadas no passado domingo, nas quais a Esquerda Republicana da Catalunha (ERC) foi a grande derrotada. Perdeu quase 180 mil votos e, com eles, 13 dos 33 mandatos que tinha no parlamento regional. Perdeu o governo catalão. Perdeu também o seu líder, Pere Aragonès, presidente de governo ainda em funções, que nem o lugar de deputado assumirá, tal foi a dimensão do desaire. Porventura mais importante e penoso, perdeu o lugar de primeiro partido da família nacionalista catalã, posição agora ocupada pelo Junts, do foragido Carles Puigdemont. Mais do que uma derrota, foi uma hecatombe..Contudo, a ERC é neste momento o partido mais poderoso na Catalunha. Dela depende a formação de uma de duas maiorias de governo: uma absoluta, de esquerda, encabeçada pelo Partido dos Socialistas da Catalunha (PSC), a força política mais votada; e outra relativa e separatista, liderada pelo Junts. Manda a prudência não descartar uma terceira hipótese: os republicanos catalães optam pelo bloqueio, obrigando a região a voltar às urnas algures em Outubro. As duas últimas vias constituem um sério engulho para o PSOE de Pedro Sánchez, o que dá à ERC enorme ascendência sobre o futuro imediato da política espanhola. Nos dias que correm, um pesadelo eleitoral pode não ser mau de todo..Qualquer prognóstico é puro atrevimento. Mas a ERC parece ter incentivos para mudar de vida. Após o fracasso da intentona separatista de 2017, o partido adoptou uma postura pragmática, de contemporização com as instituições espanholas e de diálogo com o Executivo do PSOE. Deseja a independência, mas abandonou a via unilateral. O resultado foi a perda gradual de relevância eleitoral, facto que se tornou indisfarçável no domingo. Pelo contrário, o Junts, partido separatista rival, mantém firme o pulso independentista. Cresceu em votos e em mandatos. Ao fim de anos de capa caída, foragido no estrangeiro, chegando mesmo a ser contestado dentro do próprio partido, Puigdemont consegue um resultado que parecia impossível..O Junts não foi o único partido separatista radical a ter êxito. A Aliança Catalana, fundada há tão somente 3 anos, estreou-se no parlamento com dois deputados. Ou seja, o eleitorado independentista parece premiar quem não cede. E isso torna-se mais claro quando olhamos para a abstenção. Nas eleições regionais de 2021, cerca de 700 mil eleitores nacionalistas ficaram em casa e este ano esse número foi muito provavelmente superior. Estes eleitores não desapareceram. Estão desiludidos com promessas de independência não cumpridas, mas estão sobretudo exasperados com a falta de uma estratégia comum entre ERC e Junts. As fraturas entre nacionalistas inviabilizam um governo regional estável e funcional. Tão ou mais importante, comprometem a criação de uma frente comum que desafie Espanha e que avance no sentido de maior autonomia regional, ou mesmo da obtenção de soberania..No seu conjunto, os partidos nacionalistas não chegaram à maioria absoluta, algo que só encontra precedente em 1980, mas isso deve-se mais a erros próprios e a rivalidades fratricidas do que aos méritos da estratégia de ‘distensão e concórdia’ de Pedro Sánchez. Os indultos a separatistas condenados, o perdão de parte da dívida da região, as amnistias que serão aprovadas nos próximos meses, bem como outras medidas de constitucionalidade duvidosa e de lisura democrática ainda mais questionável, pouco ou nada fizeram para desarmadilhar a pulsão separatista..É esse o sinal dado por quem votou. Basta comparar os resultados das legislativas de 23 de Julho do ano passado, quando o repúdio socialista a amnistias ainda era a regra, com os de domingo: nas legislativas o PSC obteve 34% dos votos e no passado fim-de-semana, após uma mudança de opinião vertiginosa que faz das amnistias uma quase realidade, ficou-se pelos 28%. Se as amnistias fossem valorizadas pelo eleitorado enquanto método para o apaziguamento da Catalunha, os números deveriam estar ao contrário. Aliás, se o apaziguamento fosse o desejo dominante no meio nacionalista, nem o pragmatismo da ERC seria castigado, nem o radicalismo do Junts compensado..Percebe-se que Sánchez e o PSOE defendam a existência de uma causalidade simples e directa entre as cedências feitas aos separatistas e a contracção eleitoral do nacionalismo catalão. As cedências foram, são e serão controversas. Requerem elevado capital político por parte do PSOE, logo importa defendê-las. É normal. Menos lógico é ver jornalistas e analistas estrangeiros a validar uma leitura com escassíssimo suporte factual e que redunda numa conclusão espinhosa: os fins justificam os meios..Sopesados os números, são muitas as vitórias que podem ser reclamadas. Os socialistas vencem pela primeira vez em votos e mandatos numa eleição catalã – ainda que estejam longe do seu melhor resultado em percentagem de votos obtidos. À direita, o Partido Popular teve um crescimento impressionante, quintuplicando o número de deputados, que passaram de 3 para 15 – ainda que isto de pouco ou nada sirva. O VOX ganhou 30 mil votos – ainda que mantenha os mesmos deputados e não consiga disfarçar que a sua etapa de crescimento acabou. O conjunto da direita superou a esquerda – ainda que não tenha maneira de governar. A família nacionalista retém a chave do poder, tanto na Catalunha como em Espanha – ainda que tenha perdido a maioria absoluta no parlamento regional pela primeira vez em 44 anos. A única certeza é conhecida de sobra, bastante lógica, mas há muito ignorada dentro e fora de fronteiras: a claríssima maioria dos catalães não ambiciona um Estado independente, donde os tumultos e graves atropelos ao Estado de Direito ocorridos antes e depois de 2017 foram um delírio.