Claudio Monteverdi e Jean Tabourot (que ficou conhecido pelo seu pseudónimo, Thoinot Arbeau, que mais não era do que um anagrama esquisito) nasceram no mesmo século XVI, mas com mais de 40 anos a afastá-los. Para além de terem nascido em países diferentes - o primeiro em Itália e o segundo em França -, ambos abraçaram a música como derradeira arte, mas com nuances que a ambos permitiram chegar até hoje como se nunca tivessem morrido. Agradeço aos dois por, nos meus momentos mais melo-hedonistas (não consigo garantir que esta palavra exista, mas não encontro outra para descrever melhor o que se segue) me fazerem literalmente voar, no sentido em que um salto sob a forma de cabriola é um voo breve.Vamos começar pelo italiano que, de alguma forma, inventou o barroco na música. No seu oitavo livro de madrigais, encontramos o Lamento della ninfa (Lamento da ninfa, numa óbvia tradução livre do italiano). A primeira vez que ouvi aquele lamento, que numa perceção tão historicamente informada como enviesada só poderia ter sido escrito por um homem e no século XVI, fiquei comovido. Durante muito tempo, percebi que refletia a fragilidade da posição social das mulheres, ou, no mínimo, mantinha essa fragilidade como ideal de beleza. Mas, para mero efeito estético, vamos tentar apreciar o momento como se estivéssemos no renascimento, sem todo o esforço de mais de quinhentos anos para que em teoria haja igualdade e liberdade e respeito, ainda que a luta pelos direitos seja constante e não nos permita vacilar.Posto isto, voltamos à ninfa. Foi abandonada pelo seu amante e está desesperada e pensa em morte. A voz da ninfa, seja cantada por uma mulher ou por um homem, como o contratenor francês Philippe Jaroussky, na sua versão com o ensemble L’Arpeggiata, é acompanhada por um trio de vozes masculinas, que revelam compaixão por aquele momento de dor. Mais uma vez, detenho-me apenas na perspetiva renascentista, sem deixar transparecer que nem a dor é apanágio de um sexo, nem os homens têm o monopólio da abnegação.Prossigamos. A ninfa repete a palavra amor, intercalada pelos clamores dos homens. Cada vez que diz amor, aquele espírito da natureza abandonado pelo amante está mais débil. E repete o lamento. Não sei como é alguém pode ficar indiferente àquela dor específica, ou a outra qualquer. Quinhentos anos depois, a norueguesa Ane Brun traduziu para inglês as palavras de Monteverdi, numa atualização que sublinhou a beleza daquela composição. Depois, com uma guitarra folk aparentemente da histórica marca Martin, cantou-a a solo. É só ela a repetir amor, amor, amor (Oh love). E entranha-se sem se estranhar, e revira-nos e eleva-nos sem cansar. E queremos mais, sem dali sair..Voltemos ao século XVI. Thoinot Arbeaut escreveu um tratado sobre danças sociais de matriz rural chamado Orchésographie. Tem uma quantidade generosa de branles (dança francesa com coreografia variável) que ainda hoje nos faz felizes (bom, a mim faz). As minhas preferidas são a Branle D’Écosse e a Branle de la Montarde, sem qualquer outro motivo que não seja a fruição. A primeira ganha pela intensidade, pela ondulação imposta que percorre os dançarinos, que estão de mãos dadas e não conseguem evitar sentir o que sente a pessoa que está à esquerda e à direita. Depois, num momento concreto marcado pela melodia, acontece a cabriola. E aquela amálgama de pessoas voa. É uma fração de segundo que parece ser mais do que isso. Não há margem para alheamento. É a primeira regra das danças sociais, ainda que não haja regras para além do respeito.Em relação à segunda branle, sinto o apelo da criatividade que a coreografia imprime naqueles que se propõem a dançá-la. Não há margem para vergonhas, para timidez. É só estar e pertencer. Há uma primeira parte, comum a todos os dançarinos, que é um passeio saltitado, de mãos dadas, quase infantil. Depois, vem o turbilhão da segunda parte, que é uma exposição de cada um aos outros. A primeira pessoa da fila faz um movimento que depois é replicado pelos restantes dançarinos. Os músicos dão o mote e a segunda pessoa faz o mesmo. A dança constrói-se com aquilo que cada pessoa traz ao momento Cada dançarino contribui para a coreografia de igual modo, com um movimento criado de chofre, que os outros seguem como podem. Há acrobacias, há subtilezas, há inquietação, há aceitação.Agradeço a Monteverdi por ter dado voz a quase todos as perspetivas de beleza, e a Arbeau por ter embalsamado a intensidade de dançar em comunidade.