A Europa tem de acreditar em si própria
Precisei de repetir mil vezes, ao longo de décadas, que a legitimidade e a autoridade obtidas em resultado de uma vitória eleitoral têm limites. A democracia, por mais limpas que sejam as eleições e por maior que seja a percentagem de votos obtida pelos vencedores, deve ser exercida dentro de um quadro de valores éticos e de um sistema institucional claramente definido pela Constituição do país. Vencer é assumir a responsabilidade de proteger a dignidade de todos os cidadãos, promover a equidade e o progresso, respeitar o estado de direito e a lei fundamental, e representar com credibilidade o país no domínio da cooperação externa. O dirigente que não veja o seu papel sob esse prisma, que tente vender a ideia de que a vitória lhe permite fazer tudo e mais alguma coisa, colocando-se acima da lei, comporta-se desde logo como um ditador. Se estiver à frente de uma grande potência, é igualmente uma ameaça francamente preocupante para a estabilidade e a paz entre as nações.
A democracia não pode servir de porta de entrada para um regime autocrático. Há quem diga, porém, que o mundo mudou nas últimas semanas. Esta é uma afirmação ambígua, se se tiver presente a questão dos valores. As regras e os princípios que se foram consolidando ao longo das últimas oito décadas, ou mesmo no período mais curto que se iniciou com o termo da Guerra Fria, continuam válidos. E devem ser defendidos. O que é novo é o aparecimento de líderes que não dão um tostão por esses valores e que olham para as relações internacionais de modo imperial, como sendo uma questão de força, de domínio e também de contenda.
Confrontamo-nos, agora, todavia, com duas realidades determinantes.
Por um lado, a liderança americana controla a economia mais poderosa do nosso planeta e mostra estar disposta a fazer uso desse poder económico. É um erro pensar que não se precisa de aliados e que a lei internacional não tem grande peso.
Por outro, a comunicação social que conta na nossa parte do mundo gira à volta da agenda da Casa Branca, deixando um espaço limitado para o Médio Oriente ou para a Ucrânia. E mesmo quando os refere, fá-lo quase só sob o prisma de Washington. São raras as referências ao sofrimento humano e aos crimes políticos que acontecem diariamente no Sudão, no Sahel, na fronteira da República Democrática do Congo com o Ruanda, país amigo das democracias ocidentais. E inimigo mortal dos pobres cidadãos congoleses, que têm a pouca sorte de viver em terras que são suas e riquíssimas em minerais raros e preciosos. Paul Kagame, à frente do Ruanda desde 1994 e que transformou o país numa montra de desenvolvimento, organiza a pilhagem e a destruição em massa das zonas fronteiriças congolesas, e é recebido, na Europa, nos EUA, na China e no resto de África, como um líder exemplar.
Poderia mencionar outros infortúnios, todos eles ignorados pelas notícias e os ecrãs que nos alimentam quotidianamente, sempre com os mesmos temas. Parece agora não haver mais mundo para além de Trump. Quando foi a última vez que leitor teve alguma informação relativa ao tormento do povo Rohingya, à repressão dos Uigures na China, à violação dos direitos das mulheres e das raparigas no Afeganistão, à violência contra os refugiados afegãos no Paquistão, aos crimes contra os indígenas da Amazónia, e assim por diante?
Os grandes deste mundo fazem as manchetes. Nada disto é especialmente novo, exceto no que diz respeito às organizações internacionais e à geopolítica europeia.
O sistema multilateral está em profunda mutação. Vamos no sentido da proliferação das organizações sub-regionais, sem grande capacidade de intervenção, fora a vantagem de permitirem alguma aproximação entre países vizinhos. Esta tendência, se não for coordenada com as comissões regionais da ONU, ajudará ao enfraquecimento e talvez mesmo o apagamento do sistema político das Nações Unidas. Para não falar do Conselho de Segurança que se transformou numa ilusão diplomática. Ou da NATO, onde a presença americana irá diminuir de modo visível, como ficou claro nas declarações desta semana. Quem manda hoje em Washington vê a NATO de longe, como uma instituição essencialmente europeia, que deve por isso ser custeada pelos europeus.
A geopolítica europeia parece não contar, sobretudo nos planos de Trump e de Putin. A longa conversa que mantiveram esta quarta-feira sobre o futuro da Ucrânia ignorou os receios europeus e os interesses ucranianos. À Europa restaria o papel da tia rica que, amparada a uma bengala, a sua única arma, serviria apenas para da bancada lamentar os danos, e depois pagar a reparação dos estragos. É altura de dizer que não, de resistir, de tratar da nossa própria defesa. E de responder a cada autocrata com firmeza.
Conselheiro em Segurança Internacional.
Ex-secretário-geral-adjunto da ONU