A Europa contra si mesma: o ataque a Estrasburgo e a obsessão de expulsar 

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Para 27 países europeus, a prioridade absoluta parece ter-se reduzido a uma única obsessão: expulsar pessoas. Este objetivo tornou-se a “razão de Estado” que justifica quase tudo, incluindo o atropelo de princípios basilares das ordens jurídicas democráticas. 

Na semana passada celebrou-se o Dia Mundial dos Direitos Humanos. E, nem de propósito, 27 Estados-membros do Conselho da Europa — entre os quais, felizmente, Portugal não se encontra — subscreveram uma declaração destinada a condicionar politicamente as decisões do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) em matéria de imigração. 

Numa iniciativa ainda “informal”, mas que, ao que se anuncia, será formalmente subscrita em maio de 2026, estes Estados argumentam que o TEDH está a entravar de forma inaceitável os controlos migratórios e clamam por uma nova abordagem. Estão em causa, sobretudo, duas linhas jurisprudenciais: a proteção da vida familiar dos imigrantes, que tem imposto limites às expulsões quando estas implicam separações da família; e a proibição de expulsões quando exista risco de tortura ou de tratamentos desumanos ou degradantes no país de destino. Estados como a Polónia ou a Dinamarca defendem que a Convenção Europeia dos Direitos Humanos deve ser “adaptada” às circunstâncias atuais, perante a alegada ameaça de fluxos migratórios massivos — e conseguiram convencer muitos outros disso mesmo.  

Ora, sempre aprendi que os direitos humanos não se “adaptam” a circunstâncias mais exigentes. É quando estamos sob pressão que se percebe se, de facto, acreditamos nesses princípios. E é perante quem nos surge como menos “merecedor” que se testa a universalidade dos direitos humanos. Discursos que legitimam exceções — sejam elas circunstanciais ou dirigidas a certos grupos — devem repugnar-nos, porque encerram um perigo evidente: a sua normalização, em nome de interesses tidos como prementes, que um dia se vira contra nós. 

Por outro lado, esta iniciativa nega os próprios valores que visa proteger. Quer-se blindar a ordem pública dos nossos Estados, mas esquece-se que a independência judicial e o respeito pelos compromissos internacionais são pilares dessa mesma ordem. Uma declaração política desenhada para intimidar a independência dos juízes em Estrasburgo é um ataque frontal à separação de poderes e àquilo que temos como mais sagrado na ordem pública europeia.  

Acresce que as críticas são claramente exageradas. Nos últimos dez anos, os processos de imigração representaram menos de 5% do volume de casos do TEDH, com uma taxa de inadmissibilidade muito elevada. O Tribunal tem reafirmado consistentemente que os Estados dispõem de um amplo poder soberano em matéria de controlo das fronteiras, desde que exercido no respeito pelos direitos fundamentais.  

Resta a esperança de ver Portugal firme, à margem desta deriva. Quando se começa a negociar o inegociável em nome da urgência, deixa-se de defender a Europa enquanto projeto jurídico e político, para se erguer apenas uma fortaleza vazia de valores. É nos momentos de crise que se define quem somos. E queremos ser um Estado que passa o teste do verdadeiro compromisso com a Humanidade. 

Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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