A dignidade não se mede em centímetros de tecido

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Toda e qualquer forma de subjugação, opressão ou humilhação sobre as mulheres — venha de onde vier — é um ato de violência. E, dependendo das circunstâncias, pode ser classificada como crime de violência doméstica. O Estado português dispõe de mecanismos de proteção das vítimas e de punição dos agressores. Assim como as autoridades têm forma de justificadamente identificar qualquer pessoa.

Foi recentemente aprovado no Parlamento um projeto de lei que proíbe o uso do niqab e da burca em espaço público e sanciona as mulheres que o façam. Importa, porém, olhar para quem o propôs e para o contexto político e social em que a medida surge.

A esmagadora maioria das comunidades muçulmanas em Portugal não usa burca nem niqab. Por isso, é evidente que a proposta não visa resolver um eventual problema real, mas criar um. O objetivo da extrema-direita é claro: estigmatizar a comunidade muçulmana, fomentar medo e divisão na opinião pública. É islamofobia, mascarada de “segurança”. Triste de quem embarca nessa narrativa e a acompanha.

Quando um Estado proíbe o uso do niqab ou da burca não está a proteger as mulheres. É o velho patriarcado, agora com um novo disfarce: o da segurança e dos “valores ocidentais”. A retórica parece ser sedutora, moderna e civilizada, mas é profundamente hipócrita.

A justificação de que se trata de “proteger as mulheres” não resiste a uma pergunta simples: quem é realmente protegido quando uma mulher é multada por cobrir o rosto? Quem ganha quando ela é impedida de entrar num autocarro, numa escola ou num hospital? Essas medidas não libertam ninguém; isolam, excluem e reforçam o estigma sobre as mulheres muçulmanas. É uma forma de segregação — feita supostamente em nome da liberdade.

Mais grave ainda: ninguém perguntou às mulheres muçulmanas o que pensam sobre o assunto. Se usam o véu por imposição e opressão, ou por opção religiosa. Se é por imposição e está sujeita a represálias, é violência — e é sobre quem a impõe que o Estado deve agir, não sobre quem é vítima.

Se é por escolha, então a proibição é, em si mesma, uma forma de violência. E se é por razões de fé religiosa, não estará o Estado português — que consagra constitucionalmente a liberdade religiosa — a entrar em contradição com os seus próprios princípios? Fala-se em “libertação” enquanto se retira àquelas mulheres o direito de escolher. Mas, ainda mais grave, cria-se um estigma que só pode, de facto, estimular a discriminação e aumentar a opressão.

O mais revoltante é que esta agenda é promovida por quem não se preocupa com as mulheres que vivem com salários de miséria, com as vítimas de violência doméstica, com as mães que criam sozinhas os filhos ou com a promoção da igualdade de género.

A luta pelos direitos das mulheres não se faz com proibições sobre as próprias. Faz-se com acesso à educação, ao emprego, à habitação, à saúde e à cidadania plena. Faz-se com políticas que libertam pela inclusão, não pela punição. Com diálogo intercultural e educação para os direitos humanos. E faz-se, sobretudo, reconhecendo que as mulheres não são todas iguais — nem precisam de ser. A igualdade não é uniformidade: é respeito pela diferença.

A verdadeira liberdade é poder escolher — mesmo quando a escolha incomoda.

Porque a igualdade nunca se construiu pela imposição, mas pelo reconhecimento da dignidade de cada pessoa. E essa dignidade não se mede em centímetros de tecido.

Vereadora independente, Cidadãos Por Lisboa, na CML

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