A deriva reaccionária da esquerda

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Parte da esquerda intelectual e política mudou de sítio. A agenda resumida e simplificada no termo ‘woke’ constitui um corte abrupto com o passado de ilustração universalista.

É este o argumento de Mark Lilla nos Estados Unidos da América, Caroline Forest em França, Massimo Cacciari em Itália, Félix Ovejero em Espanha e de outros destacados intelectuais que, situados no campo da esquerda, teceram críticas ferozes à degenerescência do seu espaço político. Críticas de esquerda à esquerda, feitas a partir da esquerda. Na forma e no conteúdo, não se conhece nada parecido em Portugal.

Ovejero, por exemplo, identifica uma deriva reaccionária da esquerda – é, de resto, o título de um livro que publicou em 2018. Relembra que o socialismo democrático assentava na defesa da ciência contra os dogmas religiosos, no uso da razão contra o sentimentalismo, em advogar leis gerais e abstractas contra os privilégios da tradição. A liberdade sobrepunha-se ao ressentimento, ao orgulho e às ideias de singularidade tribal, pulsões naturais na espécie humana.

Contudo, nas últimas décadas, trocou-se a igualdade pela reivindicação de identidades específicas, sejam elas de género, etnia, orientação sexual ou nacionalidade. Fragmentou-se o projeto emancipador, substituindo a solidariedade de classe pela defesa de micro coletivos. A república, onde todos eram livres e iguais perante a lei, desaguou numa infinidade de taifas.

Em nome da diversidade, abandonou-se a crítica às práticas opressivas existentes em determinadas culturas e em certos regimes. Antes universais, os direitos humanos e o feminismo passaram a relativos, dependentes de contextos culturais e políticos específicos.

Veja-se a recém-galardoada com o Nobel da Paz: para as esquerdas radicais e extremas, antes de ser mulher, Maria Corina Machado será ‘fascista’. Machado fica desqualificada e Nicolás Maduro legitimado, pois, infere-se, apenas protege a Venezuela do ‘fascismo’.

Menos discutida, mas muito mais importante, é a forma como a esquerda progressista reduziu a democracia a um exercício de agitação plebiscitária, feito à margem das instituições, um erro que agora se vira contra ela.

Em 2017 e nos anos seguintes, intelectuais e políticos na Península Ibérica bateram-se pelo “direito a decidir” dos catalães, pois a simples vontade popular,

mesmo que conjuntural, bastava para derrogar a Constituição, comprometer a separação de poderes e atacar a independência do Poder Judicial.

O facto de a campanha separatista catalã assentar em deturpações históricas, ódio étnico, sentimentalismo e em falácias em tudo semelhantes às usadas por Trump ou no Brexit pouco interessava – aliás, a expressão “direito a decidir” é, em si, um sofisma.

A mesma lógica aplicou-se à insatisfação com a austeridade implementada em vários países da Europa Ocidental. O ressentimento das populações e a indignação nas ruas era, para as esquerdas radicais, ímpeto suficiente para transformar países e reinventar comunidades políticas. As emoções eram legítimas, tinham causas profundas, donde se sobrepunham à razão ilustrada.

As palavras de ordem e os contentores do lixo em chamas valiam mais do que as formas e os procedimentos institucionais da democracia. Eis a maior falácia: se as regras – as escritas e as não escritas – não se adequam à épica popular, então as regras são contrárias à democracia. Tomando emprestada a ironia de Fernando Savater, o povo – pelo simples facto de sê-lo – não precisa de submeter-se a leis, nem a controlos numéricos, nem sequer a testes de alcoolemia.

Parte da social-democracia europeia, sentindo-se acossada pela esquerda, adoptou este discurso e, onde governava, traduziu-o em políticas públicas. O axioma era simples: o povo é soberano e nada se lhe sobrepõe.

Ora, esse mesmo povo manifesta-se hoje nas urnas a favor de partidos da direita radical populista. A esquerda ficou sem norte. A memória é curta, o que joga a favor de quem anda perdido. Ainda assim, a suprema vontade do povo justifica agora matizes, limitações e até ilegalizações.

Ao temer o crime e sentir-se inseguro, o povo passou de soberano a inimputável. Ao querer limites à imigração, o povo é agora cavernícola. Ao encolher os ombros perante a festiva flotilha para Gaza, o povo tornou-se cúmplice da barbárie. A vontade popular, que antes era glorificada, deve ser afinal tutelada, já que urge proteger os eleitores de percepções e de oportunistas. Querer já não é poder.

Mais interessante é ver o centro-esquerda a acusar o centro-direita de ceder aos partidos da direita radical para segurar votos e garantir o acesso ao poder. Bem vistas as coisas, o que foi a ‘geringonça’ portuguesa e o que é o governo ‘Frankenstein’ espanhol?

As inovações da esquerda populista abriram precedentes úteis ao populismo de direita. Desde logo porque, como escreveu Mark Lilla, apresentar um assunto em termos identitários incita os adversários a fazer o mesmo.

No momento em que escrevo os portugueses ainda estão a votar. Seja qual for o resultado, é interessante notar como vários autarcas de esquerda se distanciaram dos precedentes e inovações criados pelo seu espaço político nos últimos anos – o socialista Ricardo Leão, em Loures, é o exemplo mais conhecido. A proximidade aos eleitores faz com que percebam o que com frequência escapa às elites partidárias. Veremos se os resultados ajudam a que a compreensão se estenda.

Politólogo. Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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