Há momentos em que a democracia não pede criatividade política nem engenho tático. Pede limites e contenção. E, sobretudo, pede que os partidos do centro saibam dizer não, mesmo quando os números permitem dizer sim. O debate que se adivinha em torno da revisão da Constituição e da composição do Tribunal Constitucional coloca o PSD perante um desses momentos.Importa recordar os dados essenciais da questão para que o debate seja sério. O Tribunal Constitucional não chumbou uma orientação política específica nem uma maioria concreta. Chumbou, de forma consistente, artigos das legislações sobre imigração e nacionalidade aprovadas pela maioria dos deputados, à semelhança do que fez no passado relativamente a diplomas de outras maiorias. Fê-lo por entender que determinadas normas violavam princípios constitucionais fundamentais, nomeadamente em matéria de direitos, liberdades e garantias, igualdade e proporcionalidade. Esse é, precisamente, o seu papel.Estas decisões podem suscitar discordância política e crítica jurídica. Nada disso é novo numa democracia constitucional. Preocupante seria transformar essa discordância num argumento para, por razões ideológicas, rever a Constituição ou a composição do Tribunal.O contexto atual introduz, porém, um elemento novo e particularmente sensível. Pela primeira vez nos últimos cinquenta anos, existe no Parlamento uma maioria que permite, em abstrato, avançar para uma revisão constitucional e decidir a composição do Tribunal Constitucional sem a concordância dos partidos do centro político. Soluções que durante décadas foram travadas por consensos e por uma cultura de responsabilidade democrática podem agora ser equacionadas apenas pela força dos números.O Chega tem a representação parlamentar que tem por vontade popular, e essa legitimidade eleitoral não está em causa. Mas é essa mesma vontade popular que faz com que a atual composição do Parlamento permita que as decisões estruturantes do regime possam ser negociadas ao centro, entre forças comprometidas com a Constituição, e não delegadas numa extrema-direita populista que construiu o seu discurso político contra os próprios limites do sistema democrático.É por isso que a democracia pede ao PSD que diga não. Para alterar a Constituição ou modificar a composição do Tribunal Constitucional, o partido terá de decidir se prefere negociar à direita ou ao centro. Não se trata de uma decisão técnica nem meramente estratégica. Trata-se de uma escolha sobre a natureza do regime. Da opção do PSD dependerá se o sistema constitucional português permanece ancorado numa lógica democrática de compromisso e limites ou se desliza para uma lógica populista de maioria sem contenção.A Constituição e o Tribunal Constitucional não são espaços de compensação política nem instrumentos de reequilíbrio partidário. São garantes dos direitos fundamentais. A sua autoridade não depende apenas da legalidade formal das opções, mas da legitimidade democrática de quem participa nelas. E essa legitimidade exige um compromisso inequívoco com a ordem constitucional, com a separação de poderes e com a ideia de que há limites que a maioria não pode ultrapassar.Durante cinquenta anos, a democracia portuguesa sobreviveu e prosperou porque existiu um núcleo mínimo de responsabilidade partilhada entre os partidos do centro democrático. Esse núcleo garantiu que instituições-chave, como o Tribunal Constitucional, permanecessem protegidas da lógica de radicalização, revanche ou instrumentalização. É por isso que, no Tribunal Constitucional, não se decide quem governa, mas vela-se para que a democracia continue a merecer esse nome. E, para que isso aconteça, o centro político terá de se entender para a proteger.Professor Convidado UCP/UNL/UÉ