A degradação programada: a ideologia da cultura inculta (parte 1)
Estima-se que cerca de 200.000 alunos não tenham, este ano, professor pelo menos a uma disciplina. Ninguém tem dúvidas: Portugal está - mercê das políticas de desinvestimento na Educação levadas a cabo por sucessivos Governos do PS, do PSD e do CDS, em democracia - num processo de degenerescência como nunca antes se viu. Não há remendos nem paliativos que possam esconder ou mitigar sequer o mal viral que corrói, de há décadas, um sector profissional que até aos Anos 90 conheceu estabilidade, progressão real das carreiras, coerência nos curricula, reconhecimento social. A que se deve esta corrupção do sistema? Por que razão se reformam os professores, mesmo com penalizações? A que se deve a desqualificação desta profissão? Como explicar o ambiente tecnocrata, burocrata, pobre e alienante que estudantes e professores vivem hoje nas escolas e já nas universidades? Como explicar o desencanto de quem está no terreno e como justificar a violência, a incuriosidade, a “seca” com que muitos - professores e alunos - encaram a escola? Um livro poderá explicar, a partir do exemplo americano, muita da nossa realidade atual: A Cultura Inculta - Ensaio sobre o declínio da cultura geral / De como a Educação Superior vem Defraudando a Democracia e Empobrecendo os Espíritos dos Estudantes de Hoje (Europa-América, 1987).
Note-se bem a pertinência do título, jogando com um paradoxo e a explicitação dos termos em que Allan Bloom debate a questão educativa: a cultura inculta e a centralidade de certas palavras: “declínio”, o verbo “defraudar”, “empobrecimento [dos espíritos]”. É um livro que mereceria reedição urgente, com um prólogo (penso em Viriato Soromenho-Marques, em Carlos Fiolhais, em Carlos Ceia, porventura em Roberto Carneiro) que expusesse longamente as causas da degradação do ensino em Portugal. É certo que os professores como força de trabalho essencial aos regimes democráticos sofrem, há dezenas de anos, de ataques sistemáticos por parte da tutela que deveria precisamente proteger e promover, com salários dignos (e europeus) e condições de facto, esta nobre profissão. O problema é complexo, mas não é por falta de diagnósticos (e até de prognósticos) que a falta de professores é hoje o dito problema complexo que urge resolver. Aliás, a complexidade deste problema tem, na origem, políticas concretas que visaram empobrecer a profissão docente, empobrecendo subsequentemente, ao nível da cultura geral e de um gosto pelo verdadeiro saber científico, as gerações nascidas depois de 1970 (é a data-charneira indicada por Allan Bloom). O problema é complexo porque os partidos políticos no poder o tornaram complexo. Desarticularam a lógica dos concursos, complexificaram o regime de progressão na carreira e, sob a capa de um “simplex” muito progressista e inovador (estas palavras vão sempre juntas no discurso oficial, seja do PS ou do PSD), o que fizeram foi destruir a organização democrática das escolas, com Conselhos de Escola partidarizados, permissivos às ingerências de representantes de empresas e de interesses partidários via câmaras municipais (é essa a lógica da municipalização do ensino: arregimentar, a baixo preço, futura força de trabalho mal paga e acrítica).
É curioso que, entre aqueles que têm poder de decisão e a quem cabe organizar o sistema, queiram sempre, a reboque do discurso da centralidade dos alunos na Educação, culpabilizar e diabolizar os professores. Mas a “cultura inculta”, como discurso e prática, tem uma só explicação: os interesses económicos, venham eles donde vierem. E, já agora, a manutenção dos privilégios de classe, pois é óbvio que se se destruir o ensino público é o ensino privado que se enriquece, encontrando, desde as famílias ricas às da classe média, quem pague uma Educação que se diz “de rigor e de excelência”. Mas nem mesmo isto é verdade, pois que a desqualificação dos professores, desde há 15 anos a esta parte, coloca, sejam os do público, sejam os do privado, todos na mesma situação de burocratas, tarefeiros, fanáticos ou industriados fazedores de aulas digitais mais pobres, porque mal pagas.
A estabilização do regime de colocação de professores, o fim das cotas, o fim da figura do professor-titular, o descongelamento efectivo das carreiras e a organização curricular com base num autêntico desígnio de exigência nacional em que as letras e as artes, as ciências e demais disciplinas curriculares são pensadas não para o mentiroso e manipulador discurso do “sucesso” e dos “rankings”, mas em função de um país onde, aos portugueses e aos estrangeiros, é permitido viver com dignidade, isso é o que qualquer Governo deveria defender. A verdadeira causa da degradação do ensino em Portugal é uma só: a lógica económica de todas as decisões dos Governos que, no Ocidente, como diz Allan Bloom, traíram um ideal de civilização. Essa lógica assenta no seguinte (e é bom que os professores percebam de uma vez): submetidos ao processo de massificação escolar, todos os países desenvolvidos têm dificuldade em pagar decentemente aos professores, o que se traduz na penúria dos recursos. A solução que os Governos encontraram é esta: a digitalização. Esta revolução legitima o recrutamento de professores pouco qualificados, reduzidos ao papel de “facilitadores” e de “mediadores” de um saber que é esquartejado e infantil desde o 1.º ciclo ao Secundário. O professor torna-se um mero cumpridor de programas pensados de cima para baixo. A prova disso é, nas reuniões entre a Tutela e os professores, a atitude ora de desprezo, ora de paternalismo por parte de secretários de Estado e de ministros.
A única ideologia em curso em Portugal no que à Educação diz respeito é, pois, a da cultura inculta: o professor, na metáfora de Michel Desmurget, transformou-se num “contador antropomórfico”, cuja atividade “se resume a indicar sumariamente aos alunos os programas digitais a seguir” (in A Fábrica de Cretinos Digitais, p. 141), assegurando-se “de que os ‘digital natives’ ficam, perante os ecrãs, mais ou menos sentados e em silêncio”. Mal pagos e sem habilitações (este Governo defende a entrada na profissão docente de muitos que não têm senão a chamada “habilitação própria”…), isto é, proletarizados no pior sentido, os professores são meros contínuos.
Pois bem, a pergunta impõe-se: por que razão as famílias não se revoltam perante esta realidade: a da digitalização, a da precarização docente? Porque o discurso da poupança orçamental se sobrepõe ao verdadeiro interesse nacional: ter professores cultos e gerações que pensem.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico