Para quem não conheça a expressão “bolchevismo cultural”, Klaus Mann é uma óptima fonte (Contra a Barbárie – um alerta para os nossos dias). Posto que seja essa a arma de arremesso contra todos os que, com maior veemência, defendem a existência de órgãos culturais livres, uma imprensa livre; no fundo, uma actividade cultural que promova e dinamize a cidadania, atacar alguém de “bolchevismo cultural” é um velho e conhecido argumento das tropas fascistas-neoliberais que, já nos tempos de Klaus Mann, transformando as universidades em bastiões reaccionários eram a vanguarda do brutalismo germano. O que vemos hoje um pouco por toda a parte é precisamente o discurso de ódio contra uma esquerda que, em breve, será acusada de ter feito “bolchevismo cultural” por forças cuja incultura e o reiterado falsear da verdade dos factos não deveria carecer de demonstração. Hoje, um pouco por todo o lado, semeia-se o ódio contra a cultura e, em bom rigor, contra os seus agentes: os intelectuais. Se forem ou estiverem conotados com a “esquerdalha” (é esse o epíteto com que muitos se dirigem a quem defenda o humanismo e a solidariedade social), melhor: significa que a direita neo-trokista e de vestes proto e neofascistas podem avançar escudadas nesse argumento: o do “bolchevismo cultural”. Muito para além do que escreveu Julien Benda, ser intelectual, em Portugal, implica, antes de mais, ter-se noção de que estar à esquerda na cultura tem um histórico concreto. Um triste histórico. Bastaria a leitura de um livro de Joaquim Barradas de Carvalho, O Obscurantismo Salazarista (Livros Horizonte, 1976), para percebermos quanto a perseguição a escritores e artistas, homens e mulheres das ciências, bem como a delação, a intriga, a inveja (a irmã mais nova do ódio) foram (e são) no nosso país doenças crónicas que os intelectuais sofrem em teoria e na prática. Tais doenças são, actualmente, factos indesmentíveis e com episódios que se vão sucedendo: a ascensão do brutalismo passa pelo modo como quem pensa e age com memória de livros lidos e memória da História é atacado de pretensão ou de ser “esquerdalha” pelo simples motivo de defender, por exemplo, uma educação para todos, mais exigente e não só centrada nessa nova moda neoliberal: o empreedorismo. As doenças da intriga e da delação, da hipocrisia e da inveja são crónicas na psicologia do português e nem mesmo a Revolução de Abril conseguiu extirpar deste organismo doentíssimo, o país, de São Bento a Belém, das autarquias às diversas entidades do Estado, o bacilo que origina a doença do brutalismo: a mediocridade. Os brutos que hoje vemos nos partidos, quase todos, são fiéis representantes desse marialvismo toureiro e trauliteiro, dessa forma de olhar para os outros com a sobranceria própria de quem, por pensar em manada, desconfia de todo o que seja independente e tenha lido e saiba argumentar com a palavra impoluta de uma memória incorruptível. . Como explicar, pois, perante a verdade de uns poucos e a falsidade de uma maioria a brutalidade dos discursos que, aqui e ali, vão semeando na sociedade civil a mais irrespirável das atmosferas? Há um outro dado essencial: a formação deficiente da maioria dos nossos políticos e empresários, a deficiente consciência cultural de muita classe docente, de muitos que deveriam, até para seu bem, serem acusados do tal “bolchevismo cultural”. Mas não me refiro (apenas) à formação universitária, nem sequer a mestrados ou doutoramentos – graus que não garantem, na verdade, a formação de um escol moralmente robusto, independente dos grupos de pressão, vacinado contra a corrupção geral. Refiro-me a algo sem o qual não é possível falarmos em elites culturais: um saber retirado da experiência concreta da vida dos portugueses e das comunidades que connosco vivem e, a par disso, um cabedal de leituras que consolidasse uma intervenção cultural digna desse nome. A cidadania está muito para além da questão da sexualidade – questão importantíssima porque, no limite, está em causa pensar o lugar do amor e do sexo numa sociedade hedonista e na qual impera o mais soez individualismo, com adolescentes cercados por todos os lados de uma poderosíssima indústria pornográfica (a música que ouvem dirá já muito da sua relação com o Outro e com o corpo). A cultura, no fundo, é ou deveria ser uma consciencialização do eu, do si a si-mesmo com vista à “auto-descoberta”. O brutalismo jamais quererá cidadãos conscientes, antes uma horda de bárbaros seguidores. O brutalismo detesta a citação culta, o argumento válido e verdadeiro e detesta o homem e a mulher de cultura e que, por o serem, sabem que fazer cidadania é estudar as ideias, a história das ideias. Como provam à saciedade os inúmeros festivais de verão que mais não fazem senão rebaixar até à canina diversão as massas de gentes anónimas e vazias, a cultura para os que podem ser acusados de “bolchevismo cultural” jamais é diversão e distração. E nem o pode ser porque seria máquina alienante ao serviço desse brutalismo que planifica o divórcio entre o cidadão e as grandes questões e problemas do seu tempo. Por isso, seja na literatura ou nas artes, todo o acto terá de ser político pois que é em nome de uma política que dê sentido à democracia que ela, cultura, é feita. Assim, o brutalismo na política – que um André Ventura, de forma cínica e oportunista e a reboque da fragilidade argumentativa dos seus adversários – só pode ter como resposta a lúcida, mas viril e corajosa, intervenção cultural de novo atenta à vida social. Isso significa fazer (saber fazer) pedagogia. Hoje, depois da vitória de Trump em 2016 e do seu regresso para um segundo mandato que é já de implementação de um regime oligárquico global de matriz americana, é mais do que nunca urgente educar o país. O brutalismo actual, bem como o desmantelamento gradual do Estado Social (na saúde, na educação, na justiça, na administração interna) é filho não só das erradas políticas neoliberais que subordinaram a política à economia (essa “economia de casino”, como a definiu Mário Soares), mas também de uma mentalidade que diz que Salazar nunca morreu. Nem Francisco Foreiro. Ora, se muitos sabem, ou julgam saber quem foi o fascista chamado Salazar (que Cardoso Pires caricaturou como alguém que ‘boxava à inglesa’, paternalmente violentando os seus filhos), muitos há que não sabem quem foi Francisco Foreiro. Ora, no país dos comentadores mais acéfalos que temos visto, o brutalismo é uma forma nova de resgatar do olvido o modelo de inquisidor. E enquanto não se atacar – sem medo – aqueles que não hesitaram em crismar alguém de ser adepto do “bolchevismo cultural2, lembremos um outro livro: O Triunfo dos Porcos de um Orwell que nos avisou muitíssimo a tempo. Professor, poeta e crítico literárioEscreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.