Esperava-se uma segunda marcha sobre Roma. Em 2022, ainda antes de vencer as eleições legislativas, Giorgia Meloni levou boa parte da imprensa ao paroxismo. O regresso do fascismo estava ao virar da esquina. Mussolini regressava de saias e stiletti para derrubar o Estado de Direito em casa e, acto contínuo, o projecto europeu.Os jornais portugueses noticiaram a ascensão da “extrema-direita” italiana pela mão de alguém que, garantiam, se orgulhava das suas raízes neofascistas. Seria o governo mais à direita desde a II Guerra Mundial. Por isso, advertiam, saibamos que a extrema-direita não se normalizará por evolução natural; é imperativo dar-lhe combate.Nem mesmo o facto de Meloni ser a primeira mulher a alcançar a chefia do Executivo em Itália, a terceira maior economia da Europa, mereceu a simpatia do novo feminismo. As mulheres são necessárias na política, têm virtudes únicas, desde que não se apelidem Meloni, Ayuso, Thatcher ou Meir.O uso indiscriminado da palavra fascismo explica, em parte, a derrota da esquerda italiana. Em artigo no El Mundo, o historiador Matteo Re lembrou que sempre que o bloco de direita se aproxima do poder, os progressistas apostam no medo: agitam o perigo do regresso ao totalitarismo, mas esquecem-se de apresentar um programa político eficaz e apelativo.Berlusconi, Salvini, Meloni e todos os candidatos apresentados pelas direitas italianas foram presenteados com o mesmo opróbrio. Ora, como bem nota Re, reiterar a mesma mensagem em contextos diferentes enfraquece-a. Retira-lhe credibilidade. Fica a apatia de quem ouve há décadas o mesmo aviso e vê que o lobo não mostra as orelhas. Talvez haja aqui uma lição a importar.Voltando a Meloni, o seu mandato revela um poder conservador ao centro e com uma convicção europeísta inabalável. Navega habilmente a truculência volúvel que vem dos Estados Unidos da América em beneficio próprio, mas também com grande vantagem para a União Europeia, que continua sem saber como gerir Trump. Neste momento, não será exagerado concluir que a Ucrânia deve mais agradecimentos a Roma do que a Bruxelas.Por outro lado, afastou o país da estratégia de expansão chinesa, percebendo, ao contrário do espanhol Pedro Sánchez, que por muito incómodo que seja Washington, Pequim não é alternativa desejável.A dívida italiana, chaga crónica, paga hoje juros inferiores aos da França de Emmanuel Macron. O problema não desapareceu, mas o feito é digno de registo.Depois, a estabilidade. Em meados de agosto, o governo de Meloni tornou-se o quarto mais duradouro desde 1946, apenas superado pelos Executivos de Berlusconi II (2001-2005), Berlusconi IV (2008-2011) e Craxi I (1983-1986). Parecerá coisa pouca, mas no último meio século Itália deu posse a 38 governos constitucionais, o que compara com 25 em Portugal ou com 15 em Espanha.Quanto ao grande temor, tudo na mesma. Os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, bem como a separação de poderes, estão como estavam. Nem melhor, nem pior. Espanha, que tem o governo mais à esquerda desde a década de 1930, não pode dizer o mesmo.Para quem antevia uma reedição do fascismo, talvez o momento de maior desconcerto tenha ocorrido há semanas na conferência de Rimini, o grande encontro anual dos conservadores italianos. Meloni e o seu antecessor Mario Draghi, de quem foi opositora feroz, mostraram um alinhamento exemplar: urge maior competitividade económica e maior músculo militar na Europa, sob pena de esta perecer face aos desafios vindos dos Estados Unidos, da China e da Rússia.A coincidência de diagnósticos, críticas e soluções foi praticamente absoluta. O ‘Senhor Europa’, epítome de cosmopolitismo democrático, e a nacionalista alegadamente reaccionária entoaram a mesma canção. Quem diria.Politólogo. Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.