A armadilha autocrática
Numa das frases mais repetidas das últimas décadas, Churchill bem nos avisava que “a democracia é o pior de todos os sistemas, com exceção de todos os outros”.
O grande problema é que só quem tem a capacidade de comparar consegue ter a verdadeira perceção de como essa sentença é tão certeira.
É muito fácil identificar fragilidades e pecados nos sistemas democráticos: promessas por cumprir, negligência nas ações, tentação fatal pela corrupção. É bem mais difícil perceber que a chave está em ser mais exigente com quem elegemos, mas não cair na tentação fácil de escolher uma alternativa autoritária, baseada em líderes carismáticos e providenciais, que prometem resolver sozinhos e em pouco tempo o que partidos diversos não conseguiram melhorar em décadas.
A alternância, em democracia, é saudável. A alternativa autocrática, para resolver fraquezas e desilusões do poder democrático, é uma armadilha.
Os últimos anos mostraram-nos a crise do centro e o crescimento de partidos contestatários ao sistema dominante. Na Europa e noutras geografias onde a democracia se implantou com suposta solidez, estamos numa encruzilhada: só os mais velhos sentem o perigo de recuos a tempos sombrios e negros, as gerações mais novas - nascidas na Liberdade política e de direitos e imersas no vendaval tecnológico - focam-se em demasia na desilusão do que tem corrido mal e minimizam a verdadeira dimensão de passados totalitários.
Estudo do YouGov para a Economist (16/18 dezembro) apresenta conclusão global animadora (apenas 4% dos norte-americanos gostaria de ver um ditador a mandar na América), mas a separação etária é esclarecedora: entre as pessoas acima dos 65 anos, 95% continuam a acreditar que a democracia é a forma mais viável e justa de conduzir uma sociedade. Mas entre os jovens norte-americanos entre os 18 e os 29 anos, um terço defende que se deva “explorar alternativas à democracia”. No segmento seguinte, dos 30 aos 44, são ainda um quinto que assim pensa.
A democracia é como a luz elétrica: só lhe damos o verdadeiro valor quando vão abaixo.
“Fraqueza” americana
Como é que isto aconteceu? Ajudar-nos-á desenvolver o chamado “paradoxo da tolerância”, que nos explica que a democracia é tão tolerante que até é capaz de acolher no seu seio quem a tenta destruir?
Torna-se inevitável olhar para o pós-6 de janeiro de 2021. Numa América democraticamente robusta, a invasão do Capitólio levaria a uma profunda reflexão moral, que não se esgotaria na peleja político-partidária, muito menos nos trâmites, um pouco indecifráveis e cada vez mais alvos de jogo político-mediático, dos processos judiciais.
Em vez de expurgar do palco nacional quem promoveu tão violento ataque aos pilares democráticos, um dos partidos basilares do sistema bipartidário norte-americano continuou a bater-se por Trump e prepara-se para voltar a entronizá-lo.
O paradoxo do lado democrata também tem características tendencialmente autofágicas: Biden obteve vitória eleitoral clara e expressiva em 2020 (81,5 milhões de votos), chegou a ter maioria democrata nas duas Câmaras do Congresso, continua a ter o apoio da maioria democrata no Senado, mas nunca logrou o que, na tomada de posse, havia prometido atingir: reunir as fações, reconquistar a “alma da América”.
Minados pela desinformação e pelo negacionismo, os vários milhões de norte-americanos que ainda acreditam que foi Trump quem venceu a eleição de 2020 (implica que deixaram, pura e simplesmente, de acreditar nos tribunais e nos media tradicionais), esperam pela “vingança” que Trump lhes promete nos comícios.
Que “vingança” será essa? Que um triunfo (neste momento provável) de Trump a 5 de novembro sobre Biden sele o caminho para um recuo definitivo das garantias democráticas.
Quem se aproveita disto? As potências revisionistas: China, Rússia e Irão. Pequim, Moscovo e Teerão exploram cada novo episódio desta “tragédia americana” para arrebanhar novos seguidores e anunciar, ainda que abusivamente, uma “Nova Ordem Internacional”, já não sustentada nas democracias liberais e na liderança dos EUA, mas baseada numa multipolaridade que desfoca a vantagem que os Estados Unidos ainda detêm sobre a China - no PIB, no orçamento de Defesa, na inovação tecnológica, no conhecimento.
A nossa perceção quer-nos dizer que os chineses estão “cada vez mais fortes” e os norte-americanos “cada vez pior”. Índices objetivos como o crescimento económico ou até a produção industrial revela-nos o contrário. E neste mundo de “poder diluído” é cada vez mais difícil combater as crenças em que pretendemos acreditar.
A ascensão da China
e os intentos da Rússia e Irão
Principal interessado na abdicação da liderança americana, Xi Jinping testa o pulso de Washington na frente do Indo-Pacífico. A primeira grande prova será já a 13 de janeiro, as eleições presidenciais em Taiwan poderão legitimar a via democrática e virada para os EUA do vice da ainda presidente Tsai Ing-Wen (William Lai, o candidato do DPP, visto por Pequim como “separatista”). O que fará Pequim se for essa vontade democrática dos habitantes de Taiwan? Por enquanto, a China vai avisando: “Será uma escolha entre a guerra e a paz.”
Putin conhece bem o potencial de interferir em processos eleitorais externos para enfraquecer as democracias dos rivais. Fez isso em 2016 nos EUA, tem vindo a fazer, de forma mais continuada, em todo este mandato Biden. O recente alinhamento da agenda presidencial de Trump com o bloqueio republicano no Congresso à ajuda à Ucrânia faz-nos temer o pior. Sem um reforço dos EUA a Kiev até à eleição, o risco de Zelensky ser pressionado a aceitar “cedência” territorial será crescente.
Ao mesmo tempo, a articulação entre os interesses de Moscovo e Teerão nas guerras no Leste da Europa e no Médio Oriente é evidente. Rússia e Irão aprofundaram, no último ano, a parceria militar e tecnológica - e isso valeu a Putin ter drones Sahed suficientes para flagelar as cidades ucranianas desde outubro de 2022. O passo seguinte será a utilização de mísseis balísticos.
Livre das inspeções que o Acordo que Obama promovera em 2015, o Irão terá enriquecido pelo menos três vezes o urânio do seu programa nuclear nos últimos cinco anos e meio - e foi precisamente no verão de 2018 que Trump rasgou a posição dos EUA, deixando Teerão com rédea solta.
O alinhamento das potências autoritárias é claro.
Impossível escapar à geopolítica
Vai decidir-se quase tudo nos próximos meses: irá a Ucrânia resistir como país soberano e territorialmente íntegro? Vai poder cumprir o seu livre desígnio de ingressar na UE e na NATO? Vai Taiwan escapar à promessa renovada por Xi no primeiro dia do ano (o da “China reunificada”)?
Os BRICS, este ano presididos pela Rússia de Putin, preparam-se para um forte alargamento. A NATO, a cumprir 75 anos em julho, com desejável (mas ainda não certa) inclusão da Suécia por essa altura, terá de se precaver, na Cimeira de Washington, para os estragos de uma vitória de Trump meses depois.
O ano de 2024 tem tudo para nos fazer lembrar que podemos não ter qualquer interesse pela geopolítica, mas a geopolítica vai interessar-se por nós.
Autor de cinco livros sobre presidências dos EUA