Juiz anti-corrupção quer tornar públicos conflitos de interesses do Governo
É invocando "a necessidade premente de promover a confiança dos cidadãos nas instituições do Estado de Direito assegurando a transparência e o controlo da integridade nos órgãos de soberania" e com referência à "experiência" -- ou seja, ao que se passou nos últimos tempos -- que o Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC) exarou, três dias após as eleições legislativas, uma recomendação ao Governo na qual lhe lembra várias obrigações.
Além de recordar que os executivos devem elaborar “instrumentos de prevenção de riscos de corrupção e infrações conexas, nomeadamente código de conduta e plano de prevenção de riscos” que contenham “mecanismos que permitam reduzir a probabilidade de ocorrência de conflitos de interesse e promovam a transparência relativamente aos membros do Governo e aos membros dos respetivos gabinetes”, esta recomendação, datada de 22 de maio e assinada pelo presidente do Mecanismo Nacional Anticorrupção, juiz conselheiro António Pires Henriques da Graça, exorta a que qualquer “pedidos de escusa” apresentados por governantes e membros dos gabinetes que considerem encontrar-se numa situação de conflito de interesses sejam objeto de registo e publicitados.
“A Secretaria-Geral do Governo deve dispor de registo centralizado dos pedidos de escusa por parte de membros do Governo e de membros dos gabinetes relativamente a processos decisórios e publicitar, da forma que considerar mais adequada”, lê-se no documento, que está no site do organismo.
É naturalmente impossível não relacionar esta recomendação com toda a controvérsia relacionada com o caso Spinumviva (a empresa “familiar” do primeiro-ministro Luís Montenegro). No âmbito do qual, recorde-se, Montenegro afirmou ter pedido escusa em algumas decisões, assumindo a existência de conflitos de interesses, sem que, questionado pelos jornalistas — nomeadamente pelo DN — o Governo tenha esclarecido que decisões foram essas, se existe um registo dos pedidos de escusa dos membros do Executivo, e em caso afirmativo, como pode ser consultado.
É também notório que a recomendação do MENAC surge três dias após umas eleições legislativas ocorridas devido ao caso Spinumviva, na sequência da apresentação, pelo Governo, de uma moção de confiança que foi votada negativamente pela maioria dos deputados, e quando se aguarda a formação de novo executivo sob a orientação do mesmo primeiro-ministro.
Deve pois ler-se a recomendação como dirigida aos executivos governamentais em geral — como se lê no respetivo final: “O disposto na presente Recomendação é também aplicável, com as necessárias adaptações, aos Governos das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.”
Governo não comunicou plano anticorrupção ao organismo anticorrupção?
Mas este documento do MENAC surge também, coincidentemente, dois dias depois de o DN noticiar (a 19 de maio) o facto de ter intentado uma ação na justiça para obter acesso, ao abrigo da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos, a um "Plano de Prevenção de Riscos do Governo" que este anunciou ter aprovado em Conselho de Ministros de 13 de fevereiro (dois dias antes de rebentar o caso Spinumviva), mas que até à data não publicou, recusando acesso ao mesmo quando o jornal o solicitou.
Fica agora a saber-se também que este plano, que o Governo anunciou ter aprovado "no cumprimento da Agenda Anticorrupção", conter "mecanismos que permitem reduzir os riscos de ocorrência de conflitos de interesse e que promovem a transparência relativamente aos membros do Governo e aos membros dos gabinetes" e, até, colocar "Portugal como um dos primeiros países a nível europeu a aprovar um plano com estas características", nunca terá sido comunicado ao MENAC, já que este aparenta não saber da existência do mesmo.
Dirigente do MENAC aguarda substituição
A recomendação do MENAC insta ainda a secretaria-geral do Governo a publicitar “pareceres, estudos de impacto e outros documentos complementares relevantes, relativos às iniciativas legislativas do Governo”.
Poderá ser uma das últimas ações de António Pires Henriques da Graça à frente deste organismo, já que está a aguardar substituição desde que a 13 de fevereiro, no já citado comunicado do Conselho de Ministros, foram anunciadas alterações no MENAC. Essas alterações, lê-se na informação do Governo, viriam a operar-se “através de um “Decreto-Lei que aprova a reestruturação institucional do Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC), visando superar as dificuldades de funcionamento detetadas desde a sua criação em 2021”, dotando-o “de uma nova lei orgânica, criando um Conselho de Administração e viabilizando um quadro de pessoal próprio”.
Essa proposta do Governo implicava, como foi explicado aos jornalistas, que a nomeação da liderança deste mecanismo anti-corrupção deixava de ser da competência do Procurador-Geral da República e do presidente do Tribunal de Contas e passava para a esfera do Governo, através de Resolução do conselho de Ministros. Ficou então claro que o dirigente do MENAC iria ser substituído -- o que não sucedeu até agora, já que o diploma de alteração do MENAC só viria a ser promulgado a 16 de abril, "com dúvidas", pelo Presidente da República, após o Governo se encontrar em gestão.
Publicado a 29 de abril, o decreto-lei em causa, que altera o decreto-lei nº 109-E/2021, de 9 de dezembro, mostra que o Governo terá recuado na mencionada intenção de passar a nomeação do presidente do MENAC para a competência estrita do Executivo: o artigo sobre a indicação do presidente não teve mexidas.
Nota: Artigo alterado às 12.45 de 27 de maio, para a versão publicada na versão papel do DN.