“Plano de prevenção de riscos de corrupção" do governo ficou na gaveta
"Este plano coloca Portugal como um dos primeiros países a nível europeu a aprovar um plano com estas características.”
Esta proclamação está no comunicado do Conselho de Ministros (CM) que anunciou, há mais de mês e meio e dois dias antes de o país descobrir o nome Spinumviva, a Resolução que criava o Plano de Prevenção de Riscos do Governo, inserido em “um conjunto de diplomas que contribuem para o combate à corrupção” e na “agenda anticorrupção”. Porém de tal inovador plano o país não teve até agora mais que este aperitivo: dele não há rasto no Diário da República.
Isto apesar de no início de março, quando o DN solicitou acesso ao documento, o gabinete do ministro Adjunto e da Presidência, António Leitão Amaro, ter respondido “o texto foi aprovado há duas semanas, mas ainda não é público”, acrescentando: “O Plano de Prevenção de Riscos foi aprovado em Conselho de Ministros sob a forma de Resolução, que é publicada em Diário da República, nos termos da lei. É esse o meio legal e idóneo para publicitação” - pressupondo-se assim que o documento estaria pronto e a aguardar publicação.
Recomendava o Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC), a 1 de fevereiro de 2024, que este plano fosse aprovado no prazo de 60 dias após o início de funções, publicando-o no prazo de 10 dias a contar da sua aprovação.
Porém tal instrumento, que, de acordo com o comunicado do Conselho de Ministros que o anuncia, “abrange a organização e atividade do Governo, incluindo áreas de administração e de suporte, contendo mecanismos que permitem reduzir os riscos de ocorrência de conflitos de interesse e que promovem a transparência relativamente aos membros do Governo e aos membros dos gabinetes” foi aprovado quase um ano após o Executivo de Luís Montenegro tomar posse.
E, quase dois meses passados sobre a sua anunciada aprovação, quando outras resoluções de conselhos de ministros mais recentes foram publicadas no Diário da República (caso da resolução que aprova a Estratégia Única dos Direitos das Crianças e Jovens 2025-2035, aprovada no CM de 20 de fevereiro e publicada a 28 do mesmo mês), o alegadamente tão inovador plano de prevenção de riscos de corrupção no Governo continua, apesar da sua promessa de mais e melhor transparência, a primar pela invisibilidade.
Igualmente pouco transparente se manifesta a comunicação do Governo e do gabinete do ministro adjunto: malgrado o DN ter, a 6 de março, solicitado, ao abrigo da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (Lei n.º 26/2016, de 22 de Agosto), acesso à resolução/plano em causa, não surgiu até à data qualquer resposta - mesmo se a lei invocada impõe que a entidade requerida responda, afirmativa ou negativamente, em dez dias.
“O governo já desistiu até de aparentar ter preocupações éticas”
O Governo poderia invocar, aponta ao DN um ex-membro do ministério da Presidência, dois motivos para a recusa -- ou o plano estar “em redação final”, ou seja, não estar finalizado, ou considerar que não se trata “um documento administrativo” (é uma resposta possível, ainda que, de acordo com um especialista em Direito Administrativo consultado pelo jornal, o plano final é de facto um documento administrativo e não há nenhum motivo para não ser público -- até porque, como garante o Governo, estava a aguardar publicação). Porém, nenhuma destas razões foi invocada: não há simplesmente resposta.
Assim, e dadas as circunstâncias -- a queda do Governo devido ao “chumbo” de uma moção de confiança apresentada face às acusações de conflito de interesses e de violação da exclusividade por parte do primeiro-ministro devido à empresa “familiar” Spinumviva --, como interpretar o “apagão” de um plano que visaria exatamente evitar esse tipo de situação?
Susana Coroado, investigadora correspondente da Comissão Europeia no domínio da corrupção e da boa governança, não hesita na dureza: “O governo já desistiu até de aparentar ter preocupações éticas.”
E esta investigadora na Dublin City University, consultora internacional para várias organizações não-governamentais, prossegue: “Ou querem retirar completamente o tema da agenda porque têm telhados de vidro ou de facto deixou de ser uma prioridade. Até porque, com as polémicas do governo Costa, o PSD estava convencido que a transparência era algo eleitoralmente importante. Mas perante as sondagens percebeu que se calhar não tem nada a ganhar com isso.”
Recorde-se que na campanha das legislativas de 2024 (ocorridas após a demissão de António Costa de primeiro-ministro, na sequência de a Procuradoria-Geral da República publicar um comunicado a informar que fora instaurado um inquérito no Supremo Tribunal para “analisar” suspeitas em relação a ele), a coligação AD, liderada por Luís Montenegro, pôs nas ruas um cartaz onde se lia “Corrupção e falta de ética -- já não dá para aguentar”.
Recorde-se também que no seu discurso de tomada de posse, a 2 de abril de 2024, Montenegro apresentou o “combate à corrupção” como uma das suas prioridades e assegurou que o seu governo promoveria “uma governação séria” e “transparente”. E que o programa de governo da AD iria tomar medidas para “reforçar as regras de transparência, controlo dos conflitos de interesses, incompatibilidades e de impedimentos dos titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos”.
Executivo nem registo de interesses publicou
Como se constata, porém, o Executivo de Montenegro levaria quase um ano a aprovar o plano de riscos de corrupção que no seu Código de Conduta (datado de 24 de abril de 2024) anunciava aprovar no prazo de 180 dias (seis meses), e, tudo leva a crer, colocou-o na gaveta, O que permite supor que poderá existir no mesmo algo de inconveniente tendo em vista o atual momento político -- os tais “telhados de vidro” de que fala Susana Coroado.
Certo é que mesmo em relação ao que estava já legislado -- a publicação do registo de interesses dos seus membros, imposta pela lei de 2019 que rege “o Exercício de Funções por Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos” – o Governo está, como o DN já noticiou, em incumprimento. E, inquirido sobre o facto, não dá qualquer esclarecimento.
Do mesmo modo, o Governo não esclareceu como observou (ou não) o seu próprio Código de Conduta -- o qual prevê que, em face da “eventual existência de conflitos de interesses”, seja requerido parecer “aos serviços competentes”. E estatui que “qualquer membro do Governo que se encontre perante um conflito de interesses, atual ou potencial, deve tomar imediatamente as medidas necessárias para evitar, sanar ou fazer cessar o conflito em causa, em conformidade com as disposições do presente Código de Conduta e da lei”.
Ora Luís Montenegro, depois de garantir que o facto de a Spinumviva permanecer na sua esfera jurídica -- por ser maioritariamente propriedade da esposa (casada em comunhão de adquiridos) -- não implicava qualquer conflito de interesses ou violação da lei que impõe a exclusividade, acabaria por, no início de março, passar a empresa só para o nome dos filhos, o que parece implicar o reconhecimento de que afinal existia um problema (e que a empresa ainda era sua).
Não foi possível, porém, obter resposta do Governo sobre se tinha sido pedido algum parecer relativo à situação do primeiro-ministro e da Spinumviva.
Também não se sabe -- o DN perguntou e não obteve resposta -- quantos pedidos de escusa, devido a conflitos de interesses percepcionados ou assumidos, ocorreram no governo desde que está em funções, e por parte de quem. Tudo nesta matéria, contrariando os anúncios de mais ética e mais transparência, padece de considerável opacidade.
Sendo que, como se viu esta segunda-feira no debate televisivo com o secretário-geral do PCP, Paulo Raimundo, Luís Montenegro continua a sustentar que, no que respeita à Spinumviva, não incorreu em qualquer conflito de interesses.