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Mundo
09 abril 2019 às 23h22

Uma campanha suja, dois vencedores e o silêncio que se fez

Depois de um empate técnico, segue-se o combate para formar coligação no Knesset. Nas ruas de Jerusalém, o sentimento durante o dia era de desalento. Mas ao fim da tarde tudo mudou.

Ricardo J. Rodrigues, em Jerusalém

Na verdade, Nati Avraham, de 20 anos, até estava entusiasmado. Foram as primeiras eleições em que participou. Não só tinha direito a estrear o seu voto como ainda ajudou a organizar as mesas no círculo eleitoral de Jerusalém Oriental. Voluntariou-se para a Comissão Nacional de Eleições e colocaram-no na escola de Mohamed al-Saaid, no bairro muçulmano da cidade. Mas, às três da tarde, ainda nenhum eleitor tinha aparecido para depositar o seu voto. As urnas estavam abertas desde as sete da manhã, assim permaneceriam até às dez da noite e ninguém, absolutamente ninguém, tinha comparecido à chamada.

"Isto está a ser o dia mais frustrante da minha vida", dizia o rapaz, "não esperava uma grande participação, toda a gente sabia que os palestinianos de Jerusalém não acreditavam nestas eleições, mas nunca pensei que as coisas chegassem a este extremo." Nas últimas horas, pressionados por muitos líderes árabes, os habitantes dos bairros e cidades muçulmanas acabariam por comparecer à chamada. Mas àquela hora o polícia que guardava o portão olhava para Nati com alguma comiseração. Ao ponto de, a meio da tarde, mandá-lo abandonar o posto para ir votar.

Nati atravessou o bairro árabe e depois o arménio, entrou na zona judia e dirigiu-se à sua mesa, na escola que existe na rua de São Jorge. Ali, às quatro da tarde, já 1800 dos 2200 inscritos tinham feito a sua escolha. Junto à escola onde votou, o cenário era completamente diferente. Grupos de judeus ortodoxos juntavam-se e enchiam as esplanadas, alguns cantavam versos da Tora e outros dançavam de braços abertos pelas ruas. São Jorge é zona devota, aqui espera-se sempre participação elevada e vitória à direita.

Mas mesmo Hannah Lavan, agente da polícia israelita destacada para guardar o portão de Jaffa - principal entrada dos hebreus na Cidade Velha - se mostrava surpreendida com o movimento das ruas. "Está tudo calmo, mas estão aqui demasiadas famílias a passear vindas de outras zonas. Aposto que as taxas de abstenção hoje vão ser grandes." Enganou-se na hecatombe. As duas últimas horas em que as urnas estiveram abertas foram de verdadeira correria às urnas. Das 20.00 às 22.00, o voto árabe passou de menos de 2% a 59%. No mesmo período, os totais de participação nacionais subiram de 61,8% para 71,2%.

"As pessoas tinham ficado desmotivadas com a campanha mais suja a que Israel já assistiu na sua história", dizia ao DN Nimrod Goren, professor da Universidade de Jerusalém e diretor do Mitvim, o Centro de Estudos de Política Internacional. "Benjamin Netanyahu chegou às eleições com acusações de corrupção sobre a cabeça e a negociar com o Hamas as políticas de Gaza, apesar de considerá-lo um grupo terrorista. As coisas extremaram-se entre os que estavam a favor dele e os que estavam contra." Do segundo grupo, uma boa parte escolheu Benny Gantz, da Coligaçao Azul e Branca.

A grande questão destas eleições era se Netanyahu conseguia ou não ganhar e assim tornar-se no primeiro-ministro israelita com maior longevidade da história - chegou a 2019 com uma década seguida no poder. "E jogou as cartas mais altas. A nível internacional teve o apoio de [Donald] Trump, [Vladimir] Putin, [Jair] Bolsonaro e uma série de atores europeus que fragilizaram a UE, habitualmente moderada. Internamente, fez um discurso de aproximação à extrema-direita ameaçando anexar territórios na Cisjordânia", explica Goren. No domingo, o derradeiro combate: foi às praias de Telavive convocar os banhistas que não tinham ido votar e anunciou que a menos que houvesse uma votação massiva, a esquerda ocuparia o poder.

A pressão, pelo menos em parte, funcionou. As sondagens à boca das urnas davam uma ligeira vantagem a Gantz - 37 lugares no Knesset, contra 33 para Netanyahu. Mas o que é curioso é que, nas sedes de campanha, os apoiantes de Bibi e os de Benny cantam esta noite igualmente vitória. É que Gantz pode até ter mais deputados, mas precisa de 61 cadeiras no Knesset para governar. E Netanyahu, mesmo que tenha perdido a vantagem, tem mais partidos à direita (até ao extremo) dispostos a juntarem-se a um governo liderado pelo seu partido, o Likud.

Durante a tarde de domingo, a estrada Bab al Aboud, que une o portão de Jaffa ao de Damasco, parecia servir de metáfora a um país desiludido com os políticos. Ao cair da noite, no entanto, a rua estava cheia de vendedores e pregões, gente encostada aos muros em discussões inflamadas, vendedores que instalavam bancas e outros que transportavam mercadoria em carrinhos de mão. Os resultados saíram e Jerusalém agora é a metáfora perfeita. No lado ocidental, a animação tomou conta das ruas. A oriente, terra dos palestinianos, um silêncio sepulcral. Os próximos dias decidirão o novo primeiro-ministro. Se as promessas da tal campanha suja se cumprirem, esperam-se dias difíceis na Cisjordânia.

*O jornalista viajou ao abrigo da bolsa de reportagem EUPOL da União Europeia