Quando pensamos em gastronomia francesa, pensamos em nouvelle cuisine, mas é muito mais do que isso....Sim, claro. A cozinha francesa é muito antiga. Na Idade Média já se faziam banquetes. As especiarias tinham muita influência na cozinha nessa época. De forma geral podemos dizer que até à Revolução Francesa a gastronomia francesa estava ligada ao poder, ao regime monárquico, à nobreza. Mas a partir da Revolução Francesa, a gastronomia... não sei se se pode dizer que se democratizou, mas pelo menos passou a estar mais acessível. A Revolução Francesa abolui muitos privilégios e este foi um deles. As pessoas que trabalhavam para os senhores, tiveram oportunidade de se estabelecer por conta própria. Foi assim que nasceram os restaurantes. A partir de então, a gastronomia difundiu-se. Não só em França, como no estrangeiro. Porque muitos nobres emigraram depois da Revolução e levaram com eles receitas e formas de cozinhar francesas. No início do século XX, depois da I Guerra Mundial, houve um boom na gastronomia, graças ao turismo gastronómico, com as pessoas a deslocarem-se de carro. Surgiram percursos gastronómicos. A lendária Nacional 7, que ligava Paris, Lyon e Marselha, as três maiores cidades de França. E os famosos guias gastronómicos, como o Guia Michelin, que estavam ligados a estes percursos de automóvel. Quando as pessoas iam de férias para a Côte d'Azur tinham de parar no caminho, e, graças ao guia, podiam encontrar os melhores restaurantes. Por vezes esses restaurantes ganhavam uma estrela, duas estrelas, três estrelas em função da bolsa dos viajantes. Isso permitiu uma aproximação à cozinha regional..Esteve há dias numa conferência em Lisboa para falar da cozinha da região de Lyon....Sim. Lyon é uma das regiões que beneficiou daquilo de que estava a falar, uma vez que fica no caminho entre Paris e Marselha. Também ali mulheres que trabalhavam nas casas dos nobres decidiram começar a trabalhar por conta própria. Estas mulheres que faziam uma cozinha burguesa abriram pequenos restaurantes que tinham uma coisa original: serviam pratos simples mas autênticos, feitos com produtos regionais. Não tinham uma grande diversidade, mas tinham muita imaginação. Cada uma delas era conhecida por uma especialidade. O que tinham de extraordinário era que estes pequenos restaurantes tinham um ambiente muito caloroso. Quem lá ia sabia que ia ficar sentado ao lado de alguém que não conhecia e isso aumentava o convívio. E fomentava o bom humor. O que ajudava também era que se serviam ali dois vinhos: Beaujolais e Côtes du Rhône. Estes pequenos restaurantes tinham um nome, chamavam-se bouchons..Como as rolhas?.Sim, bouchons. Podia pensar-se que era por causa do vinho, mas parece que não. Para assinalar o seu estabelecimento, as pessoas penduravam vários ramos na porta em forma de rolha. O nome viria daí. Estas mulheres começaram a abrir pequenos restaurantes desde a segunda metade do século XVIII. Foi um fenómeno que se amplificou no século XIX e até aos anos 50,60 do século XX. Porque nos anos 70, com a nouvelle cuisine, esta cozinha muito familiar perdeu importância. Mas entre finais do século XVIII e meados do século XX, as receitas eram herdadas de mãe para filha..Hoje, as pessoas querem recuperar esta cozinha tradicional?.Diria que sim, basta ver os programas que existem sobre gastronomia, há um regresso à cozinha regional. Isso não quer dizer que o lado sofisticado desapareça totalmente, mas há um esforço para juntar as duas coisas..Fala das mulheres, dos livros de receitas que passam de mãe para filha, mas quando pensamos nos grandes chefs ainda continuam a ser sobretudo homens....É verdade que por vezes são os filhos que herdam as receitas. Foi o caso de [Paul] Bocuse, que aprendeu com a mãe, George Blanc também. É engraçado porque na pastelaria é a mesma coisa: os pasteleiros são muitas vezes filhos de mulheres que faziam pão. Mas também há mulheres chefs. E algumas muito conhecidas, como Hélène Darroze, que tem três estrelas Michelin e restaurantes em Londres e Paris. Continuam é a ser uma minoria. Mas isso talvez venha a mudar..E a gastronomia portuguesa?.Deixe-me só voltar atrás. Quando se fala em gastronomia francesa, pensamos em produtos como foie gras, trufas, que se vendem a preço de ouro, pensamos em queijos, e há mais de mil em França, pensamos no vinho, na pastelaria, na diversidade de frutas e legumes. Pensamos em pratos muito conhecidos, como o pot-au-feu. Há os peixes. Há toda uma enorme diversidade de produtos. E o que é interessante é que hoje tenta-se ao máximo usar produtos regionais. Pensar que em França se importam feijões-verdes das África do Sul é uma aberração. Outra questão muito importante são os produtos biológicos. São mais caros, mas muitas vezes as pessoas preferem pagar mais pelos produtos de qualidade. Sentimos que as coisas estão a mexer..Iniciativas como o Goût de France são importantes, mesmo sendo a gastronomia francesa tão conhecida?.São muito importantes. Há chefs franceses em todo o mundo. Um pouco como os pasteleiros. E muitos chefs são formados em França. Quanto às iniciativas, não é o só o Goût de France, que existe apenas há três anos. São os salões da gastronomia, são os programas de televisão, etc.Vem a Portugal há muitos anos, vê mudanças na gastronomia portuguesa?.Vejo que tem vindo a evoluir. Descubro com prazer que há cada vez mais chefs, mais restaurantes. O que Portugal tem em comum com a França é que os portugueses gostam muito de comer. Gostam do convívio. É muito importante. A diversidade, também. O que me surpreende em Portugal é que, se em França temos tendência para evitar refeições generosas (a menos que estejamos nas festas), aqui quando chegamos a uma casa a mesa já está cheia de comida..Os imigrantes tiveram influência na cozinha francesa?.Sim. Primeiro porque há restaurantes de todos os países, sobretudo em Paris. Fiquei espantada nas duas últimas vezes que fui a Paris, descobri nas boulangeries pastéis de nata. Isso não existia. São pastelarias francesas que se inspiraram neste bolo com um sucesso mundial. Basta ver os turistas que desfilam por Belém. Outra coisa que me surpreendeu foi que as churrasqueiras vendem dois tipos de frango, o frango assado normal e o frango à portuguesa..E se tivesse de escolher: baguete ou pão alentejano?.Os dois! São muito diferentes. Fazer uma sandes é com uma baguete, fazer um ensopado de borrego é com pão alentejano..Tem um prato português favorito?.Adoro bacalhau. E mais uma vez é uma coisa muito diferente entre Portugal e França. Em França vende-se sobretudo bacalhau fresco, quando cá quase só se encontra bacalhau seco. Em termos de pratos, em França há poucos pratos de bacalhau. Mas um dos pratos de que mais gosto é cozido. O pot-au-feu francês e o cozido português, são dois mundos diferentes! De um lado cenouras, alho francês, cebola e carne de vaca, do outro couve, cenoura, batata, carnes diferentes, enchidos, etc.Como surgiu este seu interesse por Portugal.Descobri Portugal quando era jovem. Nos anos 80, a viajar por Portugal, a minha primeira descoberta foi o artesanato dos pastores no Alentejo. Pouco depois, nos anos 82, 83, descobri o pão caseiro. E isso interessou-me muito. Porque em França o pão caseiro já não existe há décadas. Agora por acaso há jovens que recomeçam a fazer pão, mas com as máquinas não é a mesma coisa. Na altura achei aquilo extraordinário. Descobri que o pão podia falar. Não é só para comer. O pão fala. Para já o ambiente: a cozinha imaculada, as toalhas brancas, os alguidares de barro, vermelho escuro. E a farinha branca que se transforma em massa, com aqueles gestos, puxar, amassar, puxar, sempre em cruz. A forma como as mulheres trabalham. Têm uma linguagem muito visual, metafórica. Isso é magnífico. Decidi: este é o assunto da minha tese. Depois pensei: o pão de trigo, tudo bem, mas há outros tipos de pão caseiro em Portugal. Tinha trabalhado na Serra da Estrela e descobri que ali as mulheres faziam pão de centeio, depois decidi que faltava o pão de mistura e a broa. Viajei de um sítio para o outro para ver esses quatro pães. E se no Alentejo a agricultura foi rapidamente industrializada e as mulheres já não cultivam o trigo, no norte as mulheres ainda cultivam o centeio e o milho. Surgiu a ideia de trabalhar sobre todo o ciclo do pão, do início ao fim..Surpreendeu-a tanta diversidade de pão num país tão pequeno como Portugal?.Não. Porque o pão caseiro está ligado à região, ao que ali se cultiva, ao clima. Não se cultiva trigo a 2000 metros de altitude!.Vem muitas vezes a Portugal?.Para a minha tese fiz 30 idas e voltas a Portugal. Foi preciso acompanhar todas as etapas do ciclo de produção: lavoura, seara, monda, rega, etc Em cada fase eu tinha de estar presente. Fiz não sei quantas idas e voltas de carro. O carro é a melhor forma de se deslocar entre as aldeias. Foi um trabalho feito sem olhar ao tempo. Geralmente, numa tese estamos pressionados pelo tempo, mas eu não. Fiz a pesquisa durante dez anos e depois demorei quase tanto tempo a redigir a tese. Quando temos tanta informação... é preciso ver como vamos apresentar a coisa e fazer uma síntese daquilo..Decidiu transformar a tese no livro O Pão das Mulheres?.Defendi a minha tese em 2004, mas só há dois ou três anos, é que a editora Âncora, com a qual já tinha trabalhado, me desafiou a publicar a tese em livro. Mas tinha 2200 páginas. Por isso sugeri que se publicasse só a parte sobre o pão. Eu tiro muitas fotos. Isso também ocupa espaço. E ainda bem que tirei fotos nas últimas três décadas porque posso garantir que hoje já não as poderia tira. Muitas daquelas coisas desapareceram.